O Herói

Tinha estado em África, numa guerra que quase toda a gente esqueceu, e voltou de lá virado do avesso.
Magrinho, penteadinho, sempre de gravata, com um andar lento, solene, quando lhe vinha a guerra à ideia mudava por completo: desatava a combater, pontapeando caixotes do lixo e insultando as pessoas, isto já com uma pinguita a estimular-lhe os entusiasmos bélicos, agredia paredes, passava rasteiras a prédios, se por acaso descobria um africano avançava de peito feito a disparar com a boca, ferindo as pessoas de cuspo, e toda a gente sabe, a começar pelas cobras, como o cuspo é mortal, até que, de repente, estacava, o corpo esvaziava-se-lhe como um balão furado, e sentava-se no passeio a chorar por si mesmo.
Comia, aqui e ali, o que lhe davam por esmola, ao fumar comia o cigarrito também, e disparava-me em cima uma carga letal de emboscadas, minas, canhões sem recuo, camaradas agonizantes e aldeias a arderem: Matei tudo o que pude afiançava ele, a bater a palma no peito Caiam-me os olhos em gotas no chão se não matei tudo o que pude na certeza, entre todas nobre, de salvar Portugal do comunismo ateu.
O mal foi a revolução explicava-me Olhe a porcaria em que este país se tornou porque O que não faltava aqui eram traidores de Moscovo e a polícia do Salazar a fingir que não via porque Sempre fomos brandos, percebe? enquanto ele e os camaradas dele davam o corpo ao manifesto em África, a morrerem que nem tordos Que nem tordos, amigo a dignificarem a Pátria (palavras dele) Ninguém me agradece ter dignificado a Pátria, entende? e continuar a dignificá-la assaltando a pontapé os sacos de plásticos de restos, que as pessoas deixavam à porta, com inimigos dos portugueses, muito agachadinhos, escondidos lá dentro.
Dormia na entrada dos prédios, umas velhotas piedosas ajudavam-no com trocos que o vinho O vinho, para os combatentes como eu, devia ser de graça anda pela hora da morte e, quer a gente queira quer não, sempre estimula as artérias e clareia o pensamento, se o deixassem, mas não deixavam, já não há alma nesta gente, tornava a partir lá para baixo É lá em baixo, na primeira fila, o meu lugar, não é aqui, amigo e lá em baixo, na selva, metia o mundo nos eixos e o mundo Não se está mesmo a ver? incluindo os americanos Os americanos de joelhos diante da gente, que remédio têm eles com receio das caravelas de antigamente e da sua valentia de agora.
A mulher abandonou-o ao voltar, farta de bravura e copos Umas jibóias é o que elas são, umas jibóias, amigo Abraçava-me, dado que os verdadeiros heróis são sensíveis Aperte-me estes ossos e, realmente, eram só ossos que eu apertava, empurrava-me com desconfiança Não é maricas por acaso, você? jurava-lhe que não, ele recuava um passo a fim de me avaliar melhor Há os que são e não parecem consentia Pronto, vá lá, aperte os ossos, seja o que Deus quiser seguido de Não me paga uma sopinha, por acaso? interrompia-se a meio da sopinha, levantando a cabeça Não os ouve, amigo? eu ouvia colheres contra dentes, ele mais ruídos suspeitos, todo de orelhas alerta O batuque dado que, antes dos tiros, os pretos se estimulavam com tambores em homenagem aos deuses obscuros mas, ao que parece, eficazes em matéria de matanças, explicou-me com simplicidade Se por acaso ganham depois comem a gente após o que regressava, tranquilo, à sopa, pedindo um pão a fim de o esfregar na tigela e aproveitar o que sobrava, o alumínio do prato até brilhava sem necessitar de lavagem, saíamos os dois e sentávamo-nos no passeio É melhor ficarmos aqui um bocadinho, pelo sim pelo não, a espiar ambos acolá na esquina, a tomarmos conta de Portugal até que me agarrava de súbito o ombro Camarada Numa cumplicidade que crescia, com ele a fitar-me, a meia pálpebra Se calhar pensa que eu sou maluco não é? e não pensava, limitava-me a espreitar a possibilidade de me ir embora, que ele interrompia para informar Sou um pobre numa voz sumida, triste Não passo de um pobre a exibir-me o desgaste das solas Um pobre a aperfeiçoar a definição Um pobre que não tem ninguém nem mulher nem filhos, ninguém a não ser a guerra, os cadáveres dos camaradas, as emboscadas, um Portugal grandioso afinal tão estreito, a sua vidinha de loucuras e esmolas Um pobre o fatito, a gravata, o lenço que tirou do bolso, a assoar-se, e nunca vi ninguém assoar-se durante tanto tempo.
Não acha? Perguntou-me ele.
António Lobo Antunes in visao.sapo.pt