Deus, a Liberdade e o Mal - Alvin Platinga

Este livro discute e exemplifica a filosofia da religião, ou seja, a reflexão filosófica sobre temas centrais da religião. A reflexão filosófica sobre estes temas (que não difere muito do simples pensamento árduo) tem uma história longa: remonta pelo menos ao séc. V a.C., quando alguns gregos pensaram longa e arduamente sobre a religião que haviam recebido dos seus antecessores. Na era cristã, essa reflexão filosófica começa no primeiro ou segundo século com os primeiros padres da igreja, ou a “Patrística”, como se lhes chama muitas vezes; e tem continuado desde então.
O coração de muitas das grandes religiões — cristianismo, judaísmo, islamismo, por exemplo — é a crença em Deus. Claro que estas religiões — religiões teístas — diferem entre si quanto ao modo de conceber Deus. A tradição cristã, por exemplo, dá ênfase ao amor e benevolência de Deus; na perspectiva islâmica, por outro lado, Deus tem um caráter algo mais arbitrário. Entre os teólogos alegadamente cristãos também há ultrassofisticados que proclamam libertar o cristianismo da crença em Deus, procurando substituí-la pela confiança no “Ser em si” ou no “Fundamento do Ser” ou algo assim. Mas continua a ser em grande parte verdadeiro que a crença em Deus é o fundamento destas grandes religiões.
Ora, a crença em Deus não é o mesmo que acreditar que Deus existe, ou que há algo como Deus. Acreditar que Deus existe é aceitar simplesmente uma proposição de um dado gênero — uma proposição que afirma que há um ser pessoal que, digamos, sempre existiu desde a eternidade, é todo-poderoso, perfeitamente sábio, perfeitamente justo, criou o mundo, e ama as suas criaturas. Acreditar em Deus, contudo, é outra questão muito diferente. O Credo do Apóstolo começa assim: “Acredito em Deus-Pai Todo-Poderoso, Criador do Céu e da Terra...”. Quem repete estas palavras e leva a sério o que dizem não está apenas a anunciar o fato de aceitar que uma dada proposição é verdadeira; está muito mais em jogo do que isso. A crença em Deus significa confiar em Deus, aceitá-Lo, entregar-Lhe a nossa vida. Para o crente, o mundo inteiro parece diferente. Céu azul, florestas verdejantes, imensas montanhas, oceano ondulante, amigos e família, o amor nas suas muitas formas e várias manifestações — o crente vê estas coisas como dádivas de Deus. O universo inteiro assume para ele um aspecto pessoal; a verdade fundamental sobre a realidade é a verdade sobre uma Pessoa. Assim, acreditar em Deus é mais do que aceitar a proposição de que Deus existe. Mesmo assim, inclui pelo menos isso. Não faz muito sentido acreditar em Deus e agradecer-Lhe pelas montanhas sem acreditar que há tal pessoa a quem agradecer, e que Ele é de algum modo responsável pelas montanhas. Nem podemos confiar em Deus e entregar-nos a ele sem crer que Ele existe: “é necessário que quem se aproxima de Deus creia que ele existe e recompensa os que o buscam” (Heb. 11 6).
Um aspecto importante da filosofia da religião diz respeito a esta última crença — a crença de que Deus existe, de que há realmente um ser do gênero que os teístas afirmam venerar e confiar. Esta crença, contudo, não foi universalmente aceite. Muitos a rejeitaram; alguns afirmaram que é claramente falsa e que é irracional aceitá-la. Em resposta, alguns teólogos e filósofos teístas tentaram apresentar argumentos bem-sucedidos ou provas a favor da existência de Deus. A esta atividade chama-se teologia natural. O teólogo natural não oferece os seus argumentos, tipicamente, para convencer as pessoas da existência de Deus; e, na verdade, poucos dos que aceitam a crença teísta o fazem por os considerarem irresistíveis. Ao invés, a função típica da teologia natural tem sido mostrar que a crença religiosa é racionalmente aceitável. Outros filósofos, é claro, apresentaram argumentos a favor da falsidade das crenças religiosas; estes concluem que a crença em Deus é demonstravelmente irracional ou irrazoável. Podemos chamar ateologia natural a esta atividade.
Assim, há uma área da filosofia da religião que investiga a aceitabilidade racional da crença teísta. Trata-se de examinar os argumentos da teologia natural e da ateologia natural. Perguntamos se quaisquer desses argumentos são bem-sucedidos e se qualquer deles fornece provas ou indícios a favor da sua conclusão. Claro que este tópico não é o único em filosofia da religião, mas é importante e é nele que este livro irá concentrar-se.
Claro que este tópico — a racionalidade da crença religiosa — não se restringe à filosofia ou aos filósofos. Desempenha um papel proeminente na literatura — no Paraíso Perdido, de Milton, por exemplo, assim como em Os Irmãos Karamazov, de Dostoievski, e em alguns romances de Thomas Hardy. Este mesmo tema encontra-se nas obras de muitos autores mais recentes — por exemplo, Gerard Manley Hopkins, T. S. Eliot, Peter De Vries, e, talvez, John Updike. E talvez seja difícil, se não impossível, fornecer uma definição proveitosa do modo filosófico de abordar este tema, em contraste com o modo literário de fazê-lo. Mas isso é desnecessário. Uma maneira muito melhor de ter uma ideia da abordagem filosófica é examinar algumas amostras representativas. Este livro é uma dessas amostras. Ao discutir temas de teologia natural e de ateologia natural não adoptarei uma pose de requintada imparcialidade; ao invés, irei comentar em pormenor alguns dos pontos principais e esmiuçar o que me parece ser a verdade da questão. Mas não tentarei dizer algo sobre todos os argumentos importantes ou sobre todos os tópicos que emergem em conexão com os que efetivamente discuto; fazê-lo seria dizer pouquíssimo sobre qualquer deles. Em vez disso, concentrarei os meus comentários em apenas dois dos argumentos tradicionais: o argumento ontológico, como exemplo da teologia natural, e o problema do mal, como o mais importante representante da ateologia natural. (O que tenho a dizer quanto a alguns dos tópicos e argumentos remanescentes encontra-se em God and Other Minds [Ithaca, NY: Cornell University Press, 1967].) Creio que algumas ideias perspicazes que surgiram recentemente na filosofia da lógica — em particular as que se centram na ideia de mundos possíveis — iluminam genuinamente estes tópicos clássicos; uma característica moderadamente inovadora deste livro, portanto, é a minha tentativa de mostrar como estas ideias perspicazes lançam luz sobre estes tópicos. Grande parte do material desenvolvido aqui encontra-se, numa forma mais rigorosa e completa, no meu livro The Nature of Necessity (Oxford: The Clarendon Press, 1974).
Tentei exprimir o que tenho a dizer de um modo que seja filosoficamente preciso e responsável; mas tentei em especial exprimi-lo tão clara e simplesmente quanto o tema o permite. Estes grandes tópicos são do interesse de muitas pessoas e a muitas dizem respeito — não sendo apenas do interesse de filósofos e teólogos profissionais. Assim, espero que este livro seja proveitoso para o neófito filosófico e para o lendário leitor comum. Tudo o que exigirá, espero, é uma determinação para seguir a argumentação e uma vontade de pensar arduamente sobre os seus vários passos.
Alvin Plantinga in criticanarede.com