O tempo - Mário Maldonato


De que maneira nós sentimos a passagem do tempo? Nós percebemos o tempo só nas mudanças, vivemos na transição entre um momento e outro. Quando algum acontecimento ou notícia irrompe inesperadamente, sentimos como se estivéssemos caindo no precipício: todo o nosso equilíbrio, ou aquilo que pensávamos que fosse equilíbrio, é jogado por terra. É aí que percebemos o tempo de maneira mais forte. Diariamente, nós transitamos de um momento a outro sem ter uma percepção clara, é como se um piloto automático nos guiasse. Somente nessas situações de rompimento nos damos conta da vida e nos agarramos a ela.

Quando o tempo se torna uma opressão?Quando a liberdade acaba. O tempo se torna opressivo quando nossa esperança no futuro deixa de existir. Quando vivemos naquele tipo de infelicidade diária, começamos a pensar que o tempo nos oprime, mas na verdade o tempo é uma abertura, enquanto esperança. No breve tempo que possuímos, devemos sorrir para a vida.

Até que ponto somos escravos do tempo? Não podemos sair do tempo, mas o tempo só escraviza aquele que vive sem sonhar, sem ter esperança. Nós vivemos no trágico do nosso destino, isso é inegável, a convenção que temos do tempo é trágica, principalmente porque todos nós morreremos um dia. Mas isso não deve gerar tristeza, faz parte da nossa vida terrena, devemos sorrir para a nossa sorte.

Quanto do tempo é parte de nossa mente e consciência? O tempo é possível fora dos humanos, de uma sociedade? Eu penso que o tempo nunca está fora da mente. Se nossa mente não estiver ativa, não existe tempo. Eu penso que ele seja uma figura inquietante, que nos dá surpresas, descobertas. Não podemos pensar o tempo, agarrá-lo, ele só existe nessas fracturas da nossa vida. Não corresponde à nossa realidade, mas ao que sentimos. Aquele que não se submete a essa figura inquietante vive a automatização dos dias.

Que proposições novas no seu livro Passagens de Tempo traz para a filosofia que estuda o tempo? O tempo dos filósofos, de Parmênides, de Aristóteles, de Santo Agostinho, de (Martin)Heidegger é diferente, porque, além de algo que percebem nas fracturas da vida, é um conceito abstracto. Apesar de eu ter sido confrontado pelo pensamento filosófico, esse livro apresenta outra forma de abordar o tempo. É a ideia de um tempo encarnado na nossa vida, aquilo que sentimos nas mudanças, nas passagens, aquilo que sentimos nas transições do sofrimento. Passei muitos anos da minha vida em contacto com a solidão de doentes com depressão, pessoas que vivem num tempo congelado, mas também em contacto com esquizofrénicos, que vivem num tempo veloz, pontuado por diversas manias. A experiência com a psicopatologia e a psiquiatria me ensinou que o tempo não pode ser pensado em termos abstractos, precisa ser entendido em termos encarnados, da maneira como é vivenciado pelas pessoas. Por isso, no livro existem as categorias da nostalgia, da consciência, do corpo, que são coisas eminentemente humanas. É desse ponto que eu parto.

Como se dá a relação entre o tempo e a materialidade do homem, o corpo? A ciência não tem palavras para descrever a relação entre a matéria e o tempo. É um verdadeiro mistério, a história miraculosa de como um agregado de moléculas deu origem à matéria pensante. A ciência está tentando já faz algum tempo responder essa questão, mas com poucos resultados.

Uma crítica feita pelo livro Passagens de Tempo é dirigida à medicina que se preocupa apenas com sintomas do corpo doente, e não com a análise das dores e angústias vividas. De que forma a medicina poderia resolver esse problema? Não sei se a medicina consegue sanar esse problema, seria necessária uma mudança de perspectiva. Não se deveria mais pensar no corpo apenas de maneira anatómica, mas como corporeidade, algo que vai além do físico. Quando eu era estudante de medicina, meus colegas eram absolutamente apaixonados por cadáveres, porque encontravam na dissecação um prazer relacionado ao conhecimento proporcionado pela actividade, o que eu respeito e compreendo. Já eu via aqueles corpos sem vida, só osso, pele, faltava um espírito e, para mim, era como se fosse uma casa vazia que eu não conhecia, mas onde sabia que alguém havia vivido. Sempre me perguntava: quem viveu naquela casa? A medicina tem muita dificuldade em pensar sobre essa vida passada.

Como podemos encarar o tempo de modo mais “humanista”, de forma que essa relação com o corpo e a vida seja levada em consideração? Não seria fácil, precisaríamos de uma revolução cultural, porque nos encontramos em uma sociedade que tem dificuldades de ver o corpo como corporeidade, isto é, como algo além do físico. Às vezes, penso que o tempo vive no corpo, que o corpo é o próprio tempo. Nossa experiência do corpo é a nossa experiência do tempo. Nós somos como um trem desgovernado em alta velocidade, e disso nasce o nosso sofrimento, a nossa incapacidade de análise, a enorme quantidade de doenças que temos hoje – as psicossomáticas, cardiovasculares, imunitárias.
Entrevista a Mauro Maldonato in veja.abril.com.br