Verdade e falsidade

O nosso conhecimento de verdades, ao contrário do nosso conhecimento de coisas, tem um oposto, nomeadamente oerro. No que respeita às coisas, podemos conhecê-las ou não, mas não há um estado mental positivo que se possa descrever como conhecimento erróneo de coisas, desde que, em qualquer caso, nos confinemos ao conhecimento por contacto. Seja o que for com o qual estamos em contacto tem de ser algo; podemos retirar inferências erradas do nosso contacto, mas o contacto em si não pode ser enganador. Assim, não há dualismo com respeito ao contacto. Mas com respeito ao conhecimento de verdades, há um dualismo. Tanto podemos acreditar no que é falso como no que é verdadeiro. Sabemos que em muitíssimos assuntos pessoas diferentes têm opiniões diferentes e incompatíveis: logo, algumas crenças têm de ser erróneas. Uma vez que as crenças erróneas são muitas vezes mantidas com tanta força como as verdadeiras, torna-se uma questão difícil saber como hão-de distinguir-se das crenças verdadeiras. Como haveremos de saber, num dado caso, que a nossa crença não é errónea? Esta é uma questão da maior das dificuldades, para a qual nenhuma resposta completamente satisfatória é possível. Há, contudo, uma questão preliminar que é bastante menos difícil, e que é esta: O quequeremos dizer com verdade e falsidade? (...).
Desejavelmente, uma resposta clara a esta questão pode ajudar-nos a obter uma resposta à questão de saber que crenças são verdadeiras, mas por agora perguntamos apenas “O que é a verdade?” e “O que é a falsidade?”, e não “Que crenças são verdadeiras?” e “Que crenças são falsas?”. É muito mportante manter estas questões diferentes inteiramente separadas, dado que qualquer confusão entre elas irá seguramente produzir uma resposta que não é realmente aplicável a qualquer delas.
Há três aspectos a observar na tentativa de descobrir a natureza da verdade, três requisitos que qualquer teoria tem de cumprir.
  • A nossa teoria da verdade tem de ser tal que admita o seu oposto, a falsidade. Muitos filósofos não satisfizeram adequadamente esta condição: construíram teorias de acordo com as quais todo o nosso pensamento teria de ser verdadeiro, tendo depois a maior das dificuldades em encontrar um lugar para a falsidade. A este respeito, a nossa teoria da crença tem de ser diferente da nossa teoria do contacto, dado que no caso do contacto não foi necessário dar conta de qualquer oposto.
  • Parece razoavelmente evidente que se não existissem crenças não poderia haver falsidade, nem verdade, no sentido em que a verdade é correlativa à falsidade. Se imaginarmos um mundo de mera matéria, não haveria lugar para a falsidade nesse mundo e, apesar de conter o que se pode chamar “factos”, não conteria quaisquer verdades, no sentido em que as verdades são coisas do mesmo tipo das falsidades. De facto, a verdade e a falsidade são propriedades de crenças e afirmações: logo, um mundo de mera matéria, dado que não iria conter crenças ou afirmações, não iria conter também verdade ou falsidade.
  • Mas, como se fosse contra o que acabámos de dizer, deve-se observar que a verdade ou falsidade de uma crença depende sempre de algo que está fora da própria crença. Se eu acredito que Carlos I morreu no cadafalso, acredito em verdade, não por causa de qualquer qualidade intrínseca da minha crença, que possa ser descoberta examinando apenas a crença, mas por causa de um acontecimento histórico que se deu há dois séculos e meio. Se eu acredito que Carlos I morreu na cama, acredito falsamente: nenhum grau de vivacidade da minha crença, ou cuidado na formação da crença, impede que seja falsa, uma vez mais por causa do que aconteceu há muito tempo, e não por causa de qualquer propriedade intrínseca da minha crença. Logo, apesar de a verdade e a falsidade serem propriedades das crenças, são propriedades que dependem das relações das crenças com outras coisas, e não de qualquer qualidade interna das crenças.
O terceiro dos requisitos anteriores conduz-nos a adoptar a perspectiva — que tem sido em geral a mais comum entre os filósofos — de que a verdade consiste em alguma forma de correspondência entre crença e facto. Contudo, não é de modo algum uma questão fácil descobrir uma forma de correspondência contra a qual não existam objecções irrefutáveis. Em parte por causa disso — e em parte por sentirem que, se a verdade consiste numa correspondência do pensamento com algo fora do pensamento, o pensamento nunca pode saber quando a verdade foi alcançada — muitos filósofos foram levados a tentar encontrar uma definição de verdade que não consista numa relação com algo completamente fora da crença. A tentativa mais importante de definição deste género é a teoria de que a verdade consiste emcoerência. Diz-se que a marca da falsidade é não ter coesão no corpo das nossas crenças, e que a essência de uma verdade é fazer parte do sistema perfeitamente acabado que é A Verdade.
Há, contudo, uma grande dificuldade nesta perspectiva, ou antes duas grandes dificuldades. A primeira é que não há razão para supor que só é possível um corpo coerente de crenças. Pode ser que, com imaginação suficiente, um romancista possa inventar um passado para o mundo que se ajuste perfeitamente ao que sabemos, e que no entanto seja bastante diferente do passado real. Em matérias mais específicas, é certo que há muitas vezes duas ou mais hipóteses que dão conta de todos os factos conhecidos sobre um dado tema, e apesar de, em tais casos, os homens de ciência procurarem descobrir factos que excluam todas as hipóteses menos uma, não há razão para que consigam sempre fazê-lo.
Em filosofia, além disso, não parece incomum que duas hipóteses rivais consigam dar conta de todos os factos. Assim, por exemplo, é possível que a vida seja um longo sonho, e que o mundo exterior tenha apenas o grau de realidade que os objectos dos sonhos têm; mas apesar de tal perspectiva não parecer inconsistente com factos conhecidos, não há razão para preferi-la em detrimento da perspectiva de senso comum, de acordo com a qual as outras pessoas e coisas existem realmente. Assim, a coerência, como definição de verdade, é mal sucedida porque não há qualquer prova de que só possa haver um sistema coerente.
A outra objecção a esta definição de verdade é que presume que o significado de “coerência” é conhecido, quando, de facto, “coerência” pressupõe a verdade das leis da lógica. Duas proposições são coerentes quando ambas podem ser verdadeiras, e são incoerentes quando pelo menos uma tem de ser falsa. Ora, para saber se duas proposições podem ser ambas verdadeiras, temos de conhecer verdades como a lei da contradição. Por exemplo, as duas proposições “esta árvore é uma faia” e “esta árvore não é uma faia” não são coerentes por causa da lei da contradição. Mas se a própria lei da contradição fosse sujeita ao teste da coerência, descobriríamos que, se escolhêssemos supor que é falsa, já nada seria incoerente com qualquer outra coisa. Assim, as leis da lógica fornecem o esqueleto ou quadro de referência no seio do qual o teste da coerência se aplica, não podendo elas próprias ser estabelecidas por este teste.
Pelas duas razões acima, não se pode aceitar que a coerência dê o significado da verdade, apesar de ser muitas vezes um dos mais importantes testes de verdade, depois de uma certa quantidade de verdade se ter tornado conhecida.
Logo, somos reconduzidos à correspondência com factos como constituindo a natureza da verdade. Resta definir precisamente o que se quer dizer com “facto”, e qual é a natureza da correspondência que tem de subsistir entre crença e facto, para que a crença possa ser verdadeira.
De acordo com os nossos três requisitos, temos de procurar uma teoria da verdade que 1) permita que a verdade tenha um oposto, nomeadamente a falsidade, 2) faça da verdade uma propriedade de crenças, mas 3) seja uma propriedade que dependa completamente da relação das crenças com as coisas exteriores.
A necessidade de permitir a falsidade torna impossível encarar a crença como uma relação da mente com um só objecto, que se poderia dizer ser aquilo em que se acredita. Se a crença fosse encarada desse modo, iríamos descobrir que, como o contacto, não admitiria a oposição entre verdade e falsidade, tendo ao invés de ser sempre verdadeira. Isto pode tornar-se mais claro através de exemplos. Otelo acredita falsamente que Desdémona ama Cássio. Não podemos dizer que esta crença consiste numa relação com um só objecto, “o amor de Desdémona por Cássio”, pois se tal objecto existisse, a crença seria verdadeira. De facto, não há tal objecto, e portanto Otelo não pode ter qualquer relação com tal objecto. Logo, a sua crença não pode possivelmente consistir numa relação com este objecto.
Poderia dizer-se que esta crença é uma relação com um objecto diferente, nomeadamente, “que Desdémona ama Cássio”; mas é quase igualmente difícil supor que tal objecto existe, quando Desdémona não ama Cássio, do que foi supor que há “o amor de Desdémona por Cássio”. Logo, será melhor procurar uma teoria da crença que não a faça consistir numa relação da mente com um só objecto.
É comum conceber as relações como se sempre se verificassem entre dois termos, mas de facto não é sempre assim. Algumas relações exigem três termos, algumas quatro, e assim por diante. Tome-se, por exemplo, a relação “entre”. Enquanto só entrarem dois termos, a relação “entre” é impossível: três termos é o mais pequeno número que a torna possível. Iorque está entre Londres e Edimburgo; mas se Londres e Edimburgo fossem os únicos lugares do mundo, nada poderia haver entre um lugar e o outro. Analogamente, ciúme exige três pessoas: não pode haver tal relação que não envolva pelo menos três pessoas. Uma proposição como “A deseja que B promova o casamento de C com D” envolve uma relação de quatro termos; quer dizer, A e B e C e D entram todos, e a relação envolvida não pode ser expressa de outro modo senão numa forma que envolva os quatro. Poderiam multiplicar-se instâncias sem fim, mas já se disse o suficiente para mostrar que há relações que exigem mais de dois termos para poderem ocorrer.
A relação envolvida em julgar ou acreditar tem de ser tomada, para que a falsidade seja devidamente permitida, como uma relação entre vários termos, e não entre dois. Quando Otelo acredita que Desdémona ama Cássio, ele não pode ter perante a sua mente um só objecto, “o amor de Desdémona por Cássio”, ou “que Desdémona ama Cássio”, pois isso exigiria que existissem falsidades objectivas, que subsistiriam independentemente de quaisquer mentes; e isto, apesar de não ser logicamente refutável, é uma teoria a evitar se for possível. Assim, é mais fácil dar conta da falsidade se tomarmos o juízo como uma relação em que a mente e os vários objectos em causa ocorrem todos individualmente; quer dizer, Desdémona e amar e Cássio têm de ser todos termos na relação que subsiste quando Otelo acredita que Desdémona ama Cássio. Logo, esta é uma relação de quatro termos, dado que também Otelo é um dos termos da relação. Quando dizemos que é uma relação de quatro termos, não queremos dizer que Otelo tem uma certa relação com Desdémona, e tem a mesma relação com amar e também com Cássio. Isto pode ser verdade no que respeita a outras relações que não o acreditar; mas acreditar não é, claramente, uma relação que Otelo tenha com cada um dos três termos em causa, mas com todos eles conjuntamente: há apenas um exemplo da relação de acreditar, mas este exemplo entrelaça quatro termos. Assim, a ocorrência efectiva, no momento em que Otelo está a dar abrigo à sua crença, é que a relação chamada “acreditar” está a entrelaçar num todo complexo os quatro termos Otelo, Desdémona, amar e Cássio. Aquilo a que se chama crença ou juízo nada é senão esta relação de acreditar ou ajuizar, que relaciona a mente com várias coisas além de si própria. Um acto de crença ou juízo é a ocorrência entre certos termos num momento particular do tempo, da relação de acreditar ou ajuizar.
Estamos agora em posição de compreender o que distingue um juízo verdadeiro de um falso. Para isso, iremos adoptar certas definições. Em todo o acto de juízo há uma mente que ajuíza, e há termos com respeito aos quais ela ajuíza. Iremos chamar à mente o sujeito no juízo, e aos restantes termos os objectos. Assim, quando Otelo ajuíza que Desdémona ama Cássio, Otelo é o sujeito, ao passo que os objectos são Desdémona e amar e Cássio. Ao sujeito e aos objectos, conjuntamente, chama-se osconstituintes do juízo. Observar-se-á que a relação de ajuizar tem aquilo a que se chama um “sentido” ou “direcção”. Podemos dizer, metaforicamente, que põe os seus objectos numa certa ordem, que podemos indicar por meio da ordem das palavras na frase. (Numa língua flexiva, o mesmo será indicado por flexões, por exemplo, pela diferença entre nominativo e acusativo.) O juízo de Otelo de que Cássio ama Desdémona difere do seu juízo de que Desdémona ama Cássio, apesar do facto de ter os mesmos constituintes, porque a relação de ajuizar coloca os constituintes numa ordem diferente nos dois casos. Analogamente, se Cássio ajuíza que Desdémona ama Otelo, os constituintes do juízo são ainda os mesmos, mas a sua ordem é diferente. Esta propriedade de ter um “sentido” ou “direcção” é algo que a relação de ajuizar partilha com todas as outras relações. O “sentido” das relações é a fonte última de ordem e série e de um grande número de conceitos matemáticos; mas não precisamos de nos deter mais neste aspecto.
Dissemos que a relação chamada “ajuizar” ou “acreditar” entrelaça num todo complexo o sujeito e os objectos. A este respeito, ajuizar é exactamente como qualquer outra relação. Sempre que uma relação se verifica entre dois ou mais termos, une os termos num todo complexo. Se Otelo ama Desdémona, há um todo complexo que é “o amor de Otelo por Desdémona”. Os próprios termos unidos pela relação podem ser complexos, ou podem ser simples, mas o todo que resulta de serem unidos tem de ser complexo. Sempre que há uma relação que relaciona certos termos, há um objecto complexo formado pela união desses termos; e conversamente, sempre que há um objecto complexo, há uma relação que relaciona os seus constituintes. Quando um acto de acreditar ocorre, há um complexo, no qual “acreditar” é a relação unificadora, e o sujeito e os objectos são dispostos numa certa ordem pelo “sentido” da relação de acreditar. Entre os objectos, como vimos ao considerar “Otelo acredita que Desdémona ama Cássio”, um deles tem de ser uma relação — neste caso, a relação “amar”. Mas esta relação, tal como ocorre no acto de acreditar, não é a relação que cria a unidade do todo complexo que consiste no sujeito e nos objectos. A relação “amar”, tal como ocorre no acto de acreditar, é um dos objectos — é um tijolo na estrutura, e não o cimento. O cimento é a relação “acreditar”. Quando a crença é verdadeira, há outra unidade complexa, na qual a relação que era um dos objectos da crença relaciona os outros objectos. Assim, por exemplo, se Otelo acredita em verdade que Desdémona ama Cássio, então há uma unidade complexa, “o amor de Desdémona por Cássio”, que é composto exclusivamente pelos objectos da crença, na mesma ordem que tinham na crença, com a relação que era um dos objectos ocorrendo agora como o cimento que liga os outros objectos da crença. Por outro lado, quando uma crença éfalsa, não há tal unidade complexa composta unicamente pelos objectos da crença. Se Otelo acredita falsamente que Desdémona ama Cássio, então não há uma unidade complexa como “o amor de Desdémona por Cássio”.
Assim, uma crença é verdadeira quando corresponde a um dado complexo associado, e falsa quando não corresponde. Admitindo, para efeitos de precisão, que os objectos da crença são dois termos e uma relação, sendo os termos postos numa certa ordem pelo “sentido” da crença, então se os dois termos nessa ordem estão unidos pela relação num complexo, a crença é verdadeira; se não, é falsa. Isto constitui a definição de verdade e falsidade que procurávamos. Ajuizar ou acreditar é uma certa unidade complexa da qual a mente é uma constituinte; se os restantes constituintes, tomados na ordem que têm na crença, formarem uma unidade complexa, então a crença é verdadeira; se não, é falsa.
Assim, apesar de a verdade e a falsidade serem propriedades de crenças, são contudo, num certo sentido, propriedades extrínsecas, pois a condição de verdade de uma crença é algo que não envolve crenças nem (em geral) qualquer mente, mas apenas osobjectos da crença. Uma mente que acredita, acredita em verdade quando há um complexo correspondente que não envolve a mente, mas apenas os seus objectos. Esta correspondência assegura a verdade, e a sua ausência implica a falsidade. Logo, damos simultaneamente conta dos dois factos de que as crenças a) dependem para a sua existência das mentes, b) não dependem das mentes para a sua verdade.
Podemos exprimir a nossa teoria de outra maneira, como se segue: Se tomarmos uma crença como “Otelo acredita que Desdémona ama Cássio”, chamaremos a Desdémona e Cássio os termos objecto, e a amar a relação objecto. Se há uma unidade complexa “o amor de Desdémona por Cássio”, consistindo nos termos objecto relacionados pela relação objecto na mesma ordem que têm na crença, então a esta unidade complexa chama-se o facto correspondente à crença. Assim, uma crença é verdadeira quando há um facto correspondente, e é falsa quando não há qualquer facto correspondente.
Vê-se assim que as mentes não criam a verdade ou a falsidade. Criam crenças, mas uma vez criadas as crenças a mente não pode torná-las verdadeiras ou falsas, excepto no caso especial em que dizem respeito a coisas futuras que estão sob o domínio da pessoa que acredita, como apanhar comboios. O que faz uma crença ser verdadeira é um facto, e este facto (excepto em casos excepcionais) não envolve de modo algum a mente da pessoa que tem a crença.
Bertrand Russell in Os Problemas da Filosofia, de Bertrand Russell (Edições 70, 2008)