Escola é "uma instituição que já não ensina e que não tem espaço para educar"

Manuel Freitas Gomes é licenciado em medicina pela Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, com especialidade em psiquiatria pela Ordem dos Médicos. Obteve mais tarde o grau de Mestre em Psiquiatria e Psicologia Médica pela mesma faculdade. É governador do Programa "Le Portage relatif à la dependence de la Drogue, Inc." (Canadá) e director da Clínica do Outeiro, especializada na prevenção e no tratamento da toxicodependência. 
A par da actividade clínica, Freitas Gomes exerce também uma vida académica activa, sendo professor no Instituto Superior da Maia, na Faculdade Lusófona do Porto e no Instituto Superior de Serviço Social do Porto. É convidado regularmente para debates e sessões de esclarecimento na área da sexualidade e da prevenção da toxicodependência, áreas nas quais ministra igualmente formação, tanto em escolas como em órgãos de comunicação social. 
Quando o contactamos para esta entrevista, Freitas Gomes alertou desde logo para o facto de as suas declarações não encaixarem naquilo que habitualmente se designa pelo "politicamente correcto" e de algumas das ideias que defende poderem ser consideradas polémicas. Melhor que ninguém, o leitor julgará por si mesmo a entrevista que se segue.

Tendo em conta a sua experiência como psiquiatra, de que forma tem visto a evolução da atitude, dos comportamentos e dos valores das crianças e dos jovens face ao meio e face ao mundo? 

Tenho visto com muita apreensão. Em primeiro lugar porque, segundo um relatório da OCDE, Portugal é um dos países europeus em que as famílias menos tempo dedicam às crianças. Isto, porque o poder político e económico, e ao contrário do que determina a lei, exige a grande parte dos trabalhadores um horário de doze horas e prolongou a idade de reforma. Ou seja, o pouco tempo que existia para a pessoa ser pessoa, com os outros e com a família, desapareceu. 
Em segundo lugar, porque à escola exige-se o duplo dever de ensinar e de educar. E, na minha opinião, ela não está preparada nem para uma nem para outra. Para a primeira, porque não oferece condições ? turmas com quase trinta alunos não funcionam em lugar nenhum do mundo, tendo em conta que a educação é um processo relacional; depois, porque a escola actual é pouco exigente, facilita em demasia a vida aos alunos. Basta ver os resultados que se produzem quando se faz uma avaliação. 
E a maioria dos professores, ao contrário de contrariar a posição laxista do ministério, aderiu a este sistema de passagens administrativas da pior maneira, deixaram-se arrastar neste processo, para grande angústia dos professores mais conscientes. Penso sinceramente que corremos o risco de estarmos a condenar gerações inteiras ao fracasso. 

Acha que a relação das crianças e dos jovens com os pais, com a família, é mais conflituosa hoje do que era algumas gerações atrás? 

Já Sócrates [O filosofo] dizia isso. Essa é uma questão recorrente ao longo dos séculos. Os jovens são sempre diferentes. Uma das grandes novidades da psicologia do século passado foi precisamente chamar a atenção para o facto de as crianças e adolescentes não serem adultos em ponto pequeno, mas uma realidade psicológica que deve ser compreendida em si mesma. Depois, a escola não prepara os pais para assumirem plenamente o seu papel, e, em função disso, estes enfrentam grandes dificuldades. 
Além disso, há uma realidade que se vai ocultando: fala-se recorrentemente do amor do pai e da mãe pela criança, mas o que existe verdadeiramente é o amor da criança pelos pais. Em alguns casos, o pai e a mãe gostam do filho. Basta andarmos na rua para vermos a agressividade física e verbal com que os pais tratam as crianças? 
Na cultura portuguesa, bater nas crianças, infelizmente, continua a ser educativo. 
Os pais não estão preparados para perceber o processo de desenvolvimento e muito menos para educá-las para a autonomia, independência e respeito pela individualidade. As crianças não são todas iguais, são todas diferentes. 

Fiz-lhe esta pergunta porque muitas vezes afirma-se que as crianças e os jovens perderam o respeito pelos pais e pelas instituições. Pensa que isso é verdade? 

Isso não é verdade. As crianças e os adolescentes de hoje têm é uma relação de distância com os pais, com a família e com a escola, nesta última porque se perderam praticamente as relações humanas. Repare que a minha geração conhecia os professores todos pelo nome e ainda hoje os conhece, o que não é verdade nos dias de hoje. 

Também é verdade que há 30 ou 40 anos o número de alunos era significativamente muito menor do que é hoje? 

Apenas em parte. A escola massificou-se a partir do 7º ano de escolaridade. O facto é que ela não se preparou para essa massificação. Depois, em vez de se investir na educação, que acredito ser o garante de futuro da sociedade portuguesa, tem-se poupado. 

Pensa que existe uma crise da família? 

Existe uma crise de família e existe uma crise da escola. Não tenho dúvida nenhuma sobre isso. Antigamente, a família, para o bem e para o mal, tinha ao menos a permanência de modelos. Hoje em dia esses modelos praticamente desapareceram. 

O que mudou então? 

A nossa realidade social sofreu uma profunda alteração. A sociedade de há 30 ou 40 anos era uma sociedade simplista, hoje é consumista; era uma sociedade moralista, hoje é amoral; era uma sociedade de sacrifício, hoje é hedonística. A sociedade mudou em todos estes aspectos e não vai voltar para trás. Por outro lado, hoje vivemos numa sociedade profundamente insegura a todos os níveis: insegura a nível da estrutura familiar, insegura a nível do emprego, insegura em relação aos projectos a nível nacional e internacional? e a segurança é uma realidade vital para o equilíbrio das pessoas. 
Depois, confrontamo-nos hoje na Europa com questões sociais de que dificilmente as pessoas querem falar. Estamos a criar uma sociedade com duas classes: a dos empregados e a dos desempregados. E estes últimos são pessoas absolutamente descartáveis. E isto cria tensões sociais brutais, inseguranças e, por arrastamento, alterações familiares muito complexas. 

Em vez de desempregados talvez se pudesse, então, designá-los por excluídos? 

São pessoas absolutamente descartáveis, o que ainda é pior. Porque o excluído ainda tem um estatuto? E isto já acontece em sociedades como os Estados Unidos, onde há pessoas que, para todos os efeitos, não existem: não têm bilhete de identidade, não têm segurança social, não têm cartão de contribuinte, ou seja, não existem para a sociedade. E, ao contrário do que dizem os líderes políticos, estamos também a criar esta realidade na Europa. 
Os conflitos sociais que eclodiram em França no ano passado e fizeram as primeiras páginas dos jornais ? dos quais nunca mais se falou, embora permaneçam ? verificam-se também em outros países. Gente que não é precisa, que não vislumbra a possibilidade de um emprego, que não teve uma escolaridade exigente, que não tem possibilidade de se integrar num mundo competitivo. 
E em Portugal já vamos assistindo a fenómenos de violência gratuita, mas ocultamos esta realidade, que acaba por não ser notícia. Neste momento não é um drama tão evidente, mas há almofadas sociais ? como o fundo de desemprego ou a pensão de reforma ? que vão acabar por desaparecer, já fomos avisados disso. E quando isso acontecer iremos assistir a um conflito social dramático.
(...)

Passando a um tema que tem sido referido ao longo da entrevista, mas que ainda não houve oportunidade de aprofundar: a relação dos jovens com a escola. Acha que os jovens continuam a valorizar a escola e os próprios valores que ela procura transmitir? Como é que os jovens hoje vêem a escola? 

Penso que como um local de encontro. Deixou de ser o local de aprendizagem por excelência, de exigência, de aprendizagem de regras, onde o professor é um modelo... Se quiséssemos ir um pouco mais longe, diria que é o local onde as famílias colocam as crianças e os jovens. Nos últimos 30 anos o tempo de permanência na escola praticamente duplicou. O que significa menos tempo com a família. E aquela que parece ser a escola ideal, do futuro, começa às 8 e acaba às 8. O que é uma coisa assustadora. 
A escola poderia ter evoluído, mas não o fez. Uma evolução no sentido de marcar dois momentos muito concretos: o momento do ensino e da aprendizagem; e o momento lúdico, recreativo, de socialização, orientado pelos professores, que, sendo pessoas de grande valor intelectual, poderiam transformar os tempos livres em momentos de socialização, de cidadania, de participação, de formação. Mas, de facto, a escola não conseguiu fazer isso, conseguiu apenas gerar mais tempo lectivo e ocupá-lo da pior maneira. 

Entrevistei recentemente um investigador brasileiro que afirmou que a escola não pode esperar o respeito dos jovens quando não compreende e muitas vezes rotula as culturas juvenis. Concorda? 

Concordo. Mas é importante ver o espaço educativo de que se fala. Volto a insistir: se a escola tivesse, por pressuposto, dois grandes momentos ? eventualmente um momento lectivo da parte da manhã e um conjunto de actividades dirigidas pedagogicamente para a formação e evolução das crianças e dos jovens à tarde ?, a escola poderia tornar-se extremamente atraente. 
Eu julgo que a maioria os professores têm uma formação que lhes permite perceber que as crianças e os adolescentes são pessoas em evolução e com um desenvolvimento adequado ao seu grupo etário. Não sei se os programas têm essa actualização, mas os professores têm com certeza essa noção. É preciso insistir neste ponto: no valor da diferença de cada uma das crianças e adolescentes e no valor de cada grupo etário nas suas diferenças e nas suas motivações, interesses e participação. Se isso for respeitado a escola torna-se num local interessante para o aluno. Actualmente não o é. 

Essa mudança de paradigma poderá passar por uma formação mais assertiva? 

De facto, deveria haver um maior apoio aos professores nessa matéria, nomeadamente formação específica para os diferentes grupos etários e grupos sociais. Porque as escolas não são todas iguais. Uma escola situada num bairro social é necessariamente diferente de uma escola situada num meio favorecido. 
Essa é uma das tarefas vitais que compete ao Ministério a Educação: promover a educação dos professores a nível dos contextos sociais e culturais. Mas isto nunca aconteceu e penso que não irá acontecer tão cedo. 

Mas será que, ainda assim, a escola consegue dar resposta a tudo o que se lhe pede? Será que não deveria haver uma resposta diferenciada que não passasse necessariamente pela escola? 

Actualmente, a escola não está a dar o necessário às nossas crianças e jovens. Nem em termos de aprendizagem ? basta ver os resultados dos exames ?, nem em termos de formação humana, social e cultural. Por outro lado, não tem apostado na formação de professores e na exigência de mudança dos contextos sociais, culturais, até de minorias, para a cidadania, para a sexualidade, etc. Diria, portanto, que a escola atravessa uma crise de futuro muito grande. É uma instituição que já não ensina e que não tem espaço para educar. 
No entanto, temos no país escolas de alta qualidade, sobretudo no sector privado. O que coloca uma questão muito importante em termos sociais: enquanto as elites económicas e sociais do país têm escolas com grande exigência de ensino e de formação, as classes mais desfavorecidas têm uma escola que não as promove, o que coloca em causa o seu futuro em termos de evolução pessoal e social. Pode admitir-se que existe uma ou outra escola pública de grande qualidade, mas no global a realidade do país é esta. Isto tem de ser mudado se queremos, de facto, que o país evolua. 
Durante a ditadura dizia-se que a 3ª classe chegava e sobrava para o povo português. Hoje em dia parece implícito que andar na escola é suficiente, mesmo que não se aprenda. Portanto, a diferença não é grande nos resultados finais. E isto leva-me a uma pergunta para a qual nunca tenho resposta: qual é o interesse da classe política dita democrática em manter uma escola que não favorece a evolução das pessoas, não as prepara para a realidade e para os desafios actuais, não as leva a uma promoção pessoal real? Às vezes fico com uma grande angústia porque me parece que o interesse é manter uma população sem objectivos. Qual será o futuro dos jovens que saem hoje desta escola, a maioria dos quais, segundo a OCDE, são analfabetos funcionais? Qual será o futuro do país nestas condições?
Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa in apagina.pt