Ética individual na arquitetura

(texto em português do brasil) O papel social do arquiteto é algo que diz respeito à competência que ele alega e quase sempre demonstra possuir, e diz respeito à concordância da sociedade quanto à consistência da pretensão. Numa sociedade desenvolvida, essa concordância é uma decorrência da inevitabilidade da divisão do trabalho. Giddens resume essa relação ao referir-se, (...) à confiança que tanto o arquiteto quanto o construtor recebem, do cliente que os contrata, os serviços, mercê da competência atribuída àqueles que têm o conhecimento perito . Ora, para o arquiteto – como para qualquer profissional de um campo disciplinar complexo e incomum –, é importante ter certeza que o julguem detentor desse “conhecimento perito” – faz parte de seu papel social. Aquela autonomia concedida a Mansart não se configuraria, se esse arquiteto não tivesse a sua competência reconhecida; o “conhecimento perito” – referido por Giddens, é a base da autoridade de quem reivindica liberdade de ação. Assim sendo, podemos dizer que, como desenvolvemos até aqui, o papel social do arquiteto é o elemento-chave para a explicação da persistência do individualismo no imaginário da profissão; aliás, como afirma Dahrendorf, descobrir os papéis sociais é o objeto da sociologia: “No ponto de intersecção entre indivíduo e sociedade encontra-se o ‘homo sociologicus’, o homem enquanto portador de papéis sociais pré-formados. O indivíduo é constituído pelos seus papéis sociais, mas estes são por sua vez o fato irritante da sociedade. Para a solução de seus problemas, a sociologia necessita sempre da referência aos papéis sociais como elementos de análise; o seu objeto consiste no descobrimento dos papéis sociais.”  O tema da importância social do indivíduo devolve à cena a questão da mentalidade burguesa, já discutida. O individualismo romântico que subjaz no imaginário da profissão da arquitetura vincula-se ao papel social atribuído ao arquiteto modernista. Por outro lado, aqueles “fatores sociológicos que introduzem complicações”, mencionados por Ehrenzeig, são “indicadores do compromisso do arquiteto com a relevância social.” Os edifícios são elementos da cultura material que transcendem ao plano utilitário de sua ocupação: eles carregam, em maior ou menor intensidade, conteúdos expressivos com os quais a coletividade pode se identificar. Num momento pontual, Eugene Raskin escreveu: “quando a arquiteto coloca o seu lápis sobre o papel, ele está fazendo mais que projetar um edifício. Ele está descrevendo sua sociedade para si mesmo e para o futuro.”  Com efeito, há mais de uma mera descrição nesse processo: há, igualmente, uma operação hermenêutica, há uma interpretação da sociedade, do sistema de valores e símbolos e do contexto no qual a mesma está inserida, está criando arte e reproduzindo sua visão estética do mundo em que vive. Tal descrição e interpretação, naturalmente, serão marcadas pela ótica de quem a elabora, que não será, necessariamente, a mesma adotada pelos demais componentes do grupo; mas também não será, precisamente, um ponto de vista que não possa ser compartilhado. Essas alternativas constituem o território para análises sociológicas interessantes quando se trata de certas profissões, como a do arquiteto. Ao falarmos nesse aspecto hermenêutico do projeto – que poderíamos estender a outras modalidades de criações artísticas – aludimos à concepção de Berry, segundo a qual “a interpretação é produzida pelo indivíduo e não pela sociedade, embora coações sociais ainda estejam operando sobre o indivíduo. Todavia, na perspectiva individualista, não se trata apenas de que o indivíduo age de acordo com a sua definição da situação. Nas suas ações, ele procura influir no modo pelo qual outras pessoas interpretam e definem os acontecimentos” . Esse papel hermenêutico é explicitamente reivindicado nos manifestos pela universalização da concepção modernista na arquitetura do século XX. A tarefa de criador que se confere aos artistas e arquitetos implica reconhecer a importância da individualidade no processo de invenção: acerca desse tema, Linton esclarece: “Como simples unidade no organismo social, o indivíduo perpetua o status quo. Como indivíduo, ajuda a mudar o status quo, quando a necessidade surge. Uma vez que nenhum ambiente social é jamais completamente estático, nenhuma sociedade pode sobreviver sem o inventor ocasional e sua habilidade de encontrar soluções para novos problemas.”  Do indivíduo criador ou da coletividade de indivíduos criadores esperam-se atos que impliquem o acréscimo, a realização da diferença, “a ação depende da capacidade do indivíduo de criar uma diferença› em relação do estado de coisas ou curso de eventos preexistente. Um agente deixa de o ser se perde essa capacidade para criar uma diferença, isto é, para exercer alguma espécie de poder”.  Há outras maneiras de enunciar esse elemento de diferenciação do indivíduo que se sobressai no grupo. Bertrand Russel, por exemplo, nota: “são muitas as maneiras pelas quais o indivíduo chega a diferir da generalidade dos membros de sua comunidade. Pode ser excepcionalmente anárquico ou criminal, pode estar dotado de raro talento artístico, pode ter o que, com o tempo, chegue a ser reconhecido como uma nova concepção religiosa ou moral, e pode ser sido favorecido com uma capacidade intelectual extraordinária.”  Cabe, antes de tudo, registrar uma consideração pertinente na questão do individualismo feita por Castoriadis, quando coloca: 
“Um individualismo metodológico seria, por oposição a um individualismo substancialista ou ontológico, um procedimento que – como faz o faz explicitamente Weber – se recusa a fazer perguntas do tipo: O que vem ‘primeiro’, o indivíduo ou a sociedade? A sociedade produz os indivíduos ou então os indivíduos produzem a sociedade? E afirma que a estas questões ‘ontológicas’ não somos obrigados a responder, pois a única coisa que nos é eventualmente compreensível é o comportamento do indivíduo efetivo ou ideal-típico - sendo esse comportamento tanto mais compreensível quanto é racional pelo menos instrumentalmente racional.”  A materialização das relações afetivas e sua expressão artística devem pautar, sem dúvida, o pensamento artístico e sua expressão por seus autores. Contudo, o gesto de mimese antecede sua atuação enquanto produção de arte, mantendo uma postura ética antes mesmo de estética. Em um contexto mais específico, devemos mencionar que a expressão ética e estética nascem juntas e “é nisso que devemos buscar o núcleo, o centro, no que diz respeito a sua função social” . Por conseguinte, devemos ultrapassar a compreensão de a arquitetura ser um fenômeno apenas artístico e de expressão estética individual e retomarmos sua idéia original de função de abrigo e de realização social. A validade da arquitetura, diferentemente das outras artes menos comprometidas com as questões funcionais da vida cotidiana, é além e aquém de seus significados estéticos, visto que sua expressividade e funcionalidade já carregam, em si mesmas, seus valores intrínsecos. Devemos, portanto, direcionar a neutralidade possível no sistema atual de individualismo arquitetônico; os culpados são, além de todos nós, alienados dos valores éticos e estéticos das artes e da arquitetura, em especial, os arquitetos – dentre os quais me incluo – que produzem espaços desagregados, autoritários e individualistas. Os poucos sinais de luz que vemos ao encontro dessa alienação, porém, dizem-nos: “… o indivíduo confrontado com potências abstratas, na luta contra as quais não se produzem colisões a que se possa dar figuração sensível,... a realidade do homem é tão trivial e medíocre que qualquer realce verdadeiramente poético da vida aparece como um corpo estranho.” 
Fellipe de Andrade Abreu e Lima in revistas.usp.br