O confronto entre duas visões da Europa - O fim do paradigma pós Guerra Fria

(...) A fraqueza da Rússia durante a década de 1990 permitiu uma certa convergência ideológica com os países europeus. Tentou-se, então, ocidentalizar a Rússia e integrá-la num espaço político comum europeu. Por várias razões, que vão muito além do âmbito deste ensaio, as elites russas pós-Ieltsin associam a convergência ideológica a um período de fraqueza estratégica da Rússia. A consequência desta percepção foi a opção estratégica, feita durante as presidências de Putin, de que o confronto com o Ocidente seria o caminho para a Rússia recuperar o seu estatuto de grande potência europeia e mundial. Para se perceber devidamente o alcance desta opção, é necessário procurar entender a natureza ideológica do discurso político que a justifica23. A um certo nível, o ressurgimento da Rússia está associado ao crescimento e ao fortalecimento do nacionalismo russo. Os debates políticos na Rússia e os discursos políticos dos seus governantes são dominados pela linguagem do nacionalismo, com referências ao excepcionalismo russo, à identidade eslava, ao papel unificador e redentor do cristianismo ortodoxo e ao lugar central da Rússia na Europa e no mundo24. No entanto, para consumo externo (e Moscovo participa activamente nos debates políticos dos países europeus sobre a política externa russa), o discurso do nacionalismo é insuficiente. É necessário o que Hans Morgenthau chamou «nacionalismo universalista»: a capacidade de transformar o discurso nacionalista numa linguagem política apelativa no plano internacional. Na sua linguagem diplomática, o regime de Putin e de Medvedev transformou o nacionalismo russo em nacionalismo europeísta. Dito de outro modo, a visão russa defende uma Europa de estados fortes, absolutamente independentes e onde as identidades nacionais se impõem a qualquer outro tipo de identidade política. Ou seja, o oposto da ordem regional que a integração europeia procura construir. As elites políticas em Moscovo afirmam com alguma frequência que a «Rússia é um país europeu, mas não pertence ao Ocidente». Esta frase explica muito bem a natureza do confronto ideológico entre a Europa e a Rússia. O Ocidente não se refere unicamente à Aliança Atlântica e ao poder dos Estados Unidos. Refere-se, igualmente, a uma ordem europeia, composta por estados que partilham a sua soberania e por instituições multilaterais, e onde as identidades políticas e económicas internacionalistas, como a social-democracia, o liberalismo, a democracia-cristã, são tão ou mais importantes do que o nacionalismo. Estamos, assim, perante um confronto de identidades. Pela sua própria existência, a ordem «ocidental» da ue é uma ameaça à legitimidade política da Rússia de Putin e de Medvedev. Por outro lado, o nacionalismo europeísta da Rússia ameaça igualmente os fundamentos da integração europeia: o Tratado de Roma foi assinado contra essa ideia de Europa. Como diz a declaração preferida das elites russas, a Rússia não pertence ao Ocidente, mas é um país europeu. Antes de mais, envia-se uma mensagem clara: a Rússia não é a União Soviética. Depois, e este é o ponto essencial, apresenta-se uma visão alternativa de Europa. A Europa da Rússia é diferente da Europa da ue em três pontos fundamentais: a concepção de Estado, a definição de democracia e a visão de ordem política europeia. Para Moscovo, em primeiro lugar, o Estado deve ser absolutamente autónomo, sem partilhar competências soberanas e recusando a jurisdição de autoridades supranacionais. Em segundo lugar, a Rússia adoptou o conceito de democracia autoritária, ou «democracia soberana». A legitimidade da democracia depende inteiramente de critérios nacionais e de valores universais. Além disso, deve servir os interesses da nação e do poder político e não os direitos, o bem-estar e a liberdade dos cidadãos. Em terceiro lugar, a Rússia prossegue uma visão revisionista da ordem política europeia25. Uma ordem assente na primazia dos interesses das grandes potências; numa hierarquização de estados, de acordo com o seu poder; em esferas de influência; num equilíbrio de poder multipolar; e no uso da força militar para prosseguir interesses nacionais e estratégias expansionistas. Não se deve ler nesta análise nenhuma condenação moralista. A Rússia tem toda a legitimidade política para definir a sua visão de ordem política do modo que entender e que melhor servir os seus interesses. Politicamente, contudo, julgo que esta visão não interessa aos estados-membros da ue (e, seguramente, não interessa a Portugal), a não ser que um dia a irrelevância da integração europeia passe a fazer parte dos seus interesses. Seria esse o resultado se a visão russa de Europa prevalecesse. Neste sentido, qualquer contaminação da política e das relações entre os estados-membros no interior da ue pela visão russa será muito negativa. Simplificando um pouco a questão, o que está em confronto, no conflito ideológico entre a Rússia e a ue, são dois séculos: o «século xix», defendido pela Rússia, e o «século xxi», proposto pela ue. Os países europeus adoptaram uma divisão de tarefas que serve os seus interesses. Mantêm a sua liberdade política para desenvolver relações bilaterais com a Rússia, e assim visitarem por vezes o «século xix europeu», mas necessitam da voz comum europeia para mostrarem que se mantêm firmemente no «século xxi». De certo modo, as capitais jogam o jogo da realpolitik e Bruxelas garante a linguagem da legitimidade. Por isso, os estados-membros precisam que a ue tenha uma política russa forte. É no papel da ue que reside a separação entre o «século xix» e o «século xxi». Por vezes, pode ser agradável revisitar o «século xix», mas nenhum país europeu quer abandonar o «século xxi». Há outra razão poderosa que explica a necessidade de reforçar a ligação bilateral ue-Rússia. A incapacidade de o fazer beneficia apenas os interesses de Moscovo. A estratégia russa é dividir a Europa, desvalorizar a ue e reforçar as relações bilaterais com os diferentes países europeus. O reforço do papel da ue constitui, assim, a melhor maneira de impedir que a visão europeia da Rússia prevaleça. O período que vai desde a segunda eleição de Putin como Presidente, em 2004, à «guerra dos cinco dias» na Geórgia, no Verão de 2008, marca o fim do paradigma do «pós- -Guerra Fria» nas relações entre a ue e a Rússia. Tornou-se claro que a Rússia não será uma democracia liberal, nem partilhará os mesmos valores políticos com os estados-membros da ue num espaço comum europeu. Assistiu-se, em vez disso, à emergência de uma «democracia autoritária» (ou «democracia soberana»), e de um Estado com uma cultura nacionalista e uma política externa revisionista e expansionista. De um modo que desafia os fundamentos da integração europeia, o regime russo apresenta a sua opção como uma visão «europeia», mas não «ocidental». Uma concepção absolutista e nacionalista de soberania, autoritarismo político interno e realpolitik externa aparecem como alternativas à integração entre países e a uma concepção partilhada de soberania, à democracia pluralista e liberal e a uma política externa com uma forte componente multilateral. Moscovo viu numa possível «ocidentalização» uma menorização do seu poder e da sua influência, escolhendo a via «antiocidental» para recuperar o estatuto de grande potência. Estamos, sem dúvida, perante uma opção estratégica. Embora seja errado falar-se de uma nova Guerra Fria, isso não significa que se desvalorize a dimensão ideológica da definição russa do que significa ser um Estado europeu e do desafio que se coloca à ue. A Guerra Fria não foi o primeiro nem o último conflito internacional com uma forte carga ideológica. De certo modo, o novo desafio ideológico pode ser mesmo mais ameaçador para os países da ue. Não tendo uma natureza revolucionária e totalitária, assusta menos, mas nem por isso é menos perigoso. O perigo reside no que o modelo europeu da Rússia revela sobre a integração europeia. A «Rússia de Putin-Medvedev» mostra as virtudes da mobilização nacionalista para o exercício do poder sem excessivos contrapesos e limites constitucionais internos, o que em tempos de crise não deixa de ser apelativo para muitos governos, e as vantagens da liberdade nacional para definir estratégias externas de acordo com uma concepção unilateral do interesse nacional, e sem as maçadas e os compromissos das instituições multilaterais, o que provoca por vezes uma certa nostalgia nas capitais dos maiores estados-membros da ue. Dito de outro modo, o actual desafio ideológico ameaça mais a coesão e a unidade da ue do que a Guerra Fria alguma vez ameaçou. A Rússia representa o passado europeu contra o qual se fez a integração europeia. Mas mostra, simultaneamente, como a liberdade nacional e a grandeza estratégica desse passado têm igualmente um lado atraente. Esta perigosa atracção pode aumentar a eficácia da estratégia russa de dividir os estados-membros e desvalorizar a importância da ue. Se o interesse da Rússia é marginalizar a ue e fortalecer as relações bilaterais com os principais estados-membros, o interesse europeu será assim impedir a fragmentação bilateral. É aqui que o exemplo da Guerra Fria é negativo, porque leva a uma estratégia de neocontenção, o que apenas serviria os interesses e a estratégia de divisão da Rússia. Se os estados-membros mais desconfiados da Rússia têm razão em grande parte da sua análise, estão politicamente errados quando recusam o envolvimento da ue com a Rússia. Estão, paradoxalmente, a fazer o jogo de Moscovo, que não pretende desenvolver as relações com a ue. Uma estratégia de «envolvimento realista» com a Rússia exige o reforço da «Parceria de Leste» e da relação transatlântica. Além disso, a ue deve procurar expor os limites do poder e as vulnerabilidades da Rússia, mostrando, por exemplo, que a alternativa ao envolvimento com a Europa é a secundarização estratégica na Ásia, principalmente em relação à China. Isso servirá para, simultaneamente, mostrar que a recuperação do estatuto de potência mundial, por parte da Rússia, não exige o confronto com o Ocidente, podendo mesmo beneficiar da cooperação com a Europa.
João Marques de Almeida in scielo.gpeari.mctes.pt