Filosofar para quê?

Sendo eu engenheiro de formação e profissão e estando a dedicar agora bastante tempo à filosofia, muito amigos me perguntam: mas afinal para que é que isso serve? Qual é o gozo? Porque é que te deu agora para aí?
Nem sempre é fácil responder a essa questão, muito menos quando é colocada por alguém que está de fora da filosofia. Este post é uma tentativa de abordar a questão.
O mundo em que vivemos é extremamente complicado! As acções que temos que desempenhar, as decisões que temos que tomar, os julgamentos que temos que fazer… para tudo isto necessitamos de recolher informação, processá-la e actuar / decidir. 
E isto acontece desde os primórdios da vida na Terra, entre o momento em que acordamos até aquele em que adormecermos: podemos comer isto?, devemos fazer aquilo?, por aqui será seguro?, atravesso a rua aqui ou ali?, visto isto ou aquilo?, que telemóvel comprar?, que software utilizar?, que livro ler?, em que acreditar?...
Ora é incomportável processar toda esta informação constantemente para que cada acção/decisão/julgamento seja feito em plena consciência e com toda a segurança. Aparecem então as regras heurísticas e os pressupostos. Para conseguirmos viver, temos que simplificar a nossa interacção com o mundo, senão morremos soterrados em decisões que não conseguimos tomar – sucumbimos à inacção! 
Como faria o ser humano primitivo para determinar se um determinado bicho era venenoso? Pelo aspecto e pela cor, talvez.
Como escolhemos um televisor? São muito poucos os que processam toda a informação relevante para a escolha de uma televisão a comprar: tamanho, resolução, tomadas, número de cores, frequência, peso, estética, qualidade, garantia, etc, etc, etc. Quais são as regras heurísticas que nos ajudam na escolha de uma televisão? A marca, a classificação num dado teste, a opinião de um amigo, a opinião do vendedor.
Como decidimos que livro comprar? Muitas vezes lemos a contra-capa, sabemos quem é o autor, eventualmente a editora e já está. Não vamos ler artigos, comentários ou críticas para cada livro que compramos. Seguramente que a maior parte das vezes não ponderamos toda a informação a que teríamos acesso.
Arriscaria dizer que a grande maioria das nossas decisões e julgamentos é feito com base em processos de natureza semelhante: regras heurísticas e pressupostos.
Assim, a nossa vida baseia-se em regras de algibeira e pressupostos. Aceitamos um código de conduta que nos foi transmitido pela sociedade em que nos inserimos, aceitamos um código de valores que nos é transmitido por uma igreja ou líder espiritual, acreditamos que o mundo é tal como o percepcionamos, acreditamos que nós somos aquilo que julgamos ser,…
Vivemos assim como que dentro de uma bolha, constituída por regras, crenças e pressupostos explícitos ou implícitos. Esta bolha permite-nos viver uma boa vida (não confundir com uma vida boa), interagir com os demais, prosperar, brincar, crescer, rir e chorar. É esta a nossa vida quotidiana, e sem esta bolha protectora e orientadora a vida como a conhecemos não seria possível. Necessitamos dela e sem ela, provavelmente, não conseguiríamos viver.
Acontece que a bolha que nos protege e guia neste mundo tem também um efeito perverso: esconde o mundo de nós! Quando crescemos são-nos transmitidas todas estas regras e pressupostos, e muitas vezes não nos apercebemos que são apenas isso mesmo – regras e pressupostos – e pensamos que são factos, o modo como o mundo funciona. O mundo vai ficando cada vez mais distante de nós, e nós cada vez mais fechados na bolha.
E é aqui que entra a filosofia! 
Quanto a mim, a filosofia pretende olhar para o mundo sem ser através da bolha. Vamos esquecer as regras, pressupostos e valores que nos transmitiram e vamos olhar para o mundo com o olhar crítico da razão. O que se passa de facto lá fora? Será que as coisas são como as vemos? Será que Deus existe? O que devemos fazer? Como devemos actuar? Como podemos saber o que quer que seja?...
Ao olhar assim de frente para o mundo rapidamente descobrimos que muitas das regras e pressupostos que suportam as nossas acções e julgamentos estão desfasados da realidade. Ganhamos também consciência que muitos desses pressupostos são errados ou incertos, e que muitos outros não passam de pressupostos.
Assim, quando filosofamos, várias coisas acontecem. 
Por um lado, esse filosofar pode ter consequências práticas e concretas, e tal é especialmente visível no que respeita à ética, justiça e política. 
Por outro lado, ganhamos uma clara consciência da existência dessa bolha e, se bem que continuemos a viver com ela, essa consciência tem impacto naquilo que somos, fazemos, pensamos e sentimos.
Finalmente, o mundo torna-se muito, mas muito mais interessante! Quando tentamos ver o mundo para além das barreiras que naturalmente construímos, verificamos que as coisas mais simples se tornam extremamente interessantes e isso, só por si, já vale a pena. 
Agora que releio o post, verifico que ressaltam daqui vários aspectos da Alegoria da Caverna, de Platão, e do Matrix. Tal não é surpreendente; o que a filosofia faz é mostra-nos que aquilo que pensamos ser a realidade talvez não seja bem assim, e que existem outras possibilidades.
Jaime Quintas in blog.criticanarede.com