Com
um pequeno exercício de análise conceptual pretendo afastar os apelos à
solidariedade das acusações de substância moral ou de boas intenções
deslocadas com que os “realistas” querem atacá-la. Mais ainda, pretendo demonstrar que a solidariedade é um acto político e de maneira alguma uma
forma de abnegação moral que foram erradamente colocadas no contexto
político. A solidariedade perde a falsa aparência de ser apolítica, assim que
aprendemos a distinguir as obrigações de demonstração de solidariedade das
obrigações morais e legais. “Solidariedade” não é um sinónimo de “justiça”, seja
no sentido moral ou legal do termo.
Chamamos as normas morais e legais “justas” quando regulam as práticas que
são no igual interesse de todos os que são por elas afectados. Normas justas
asseguram liberdades iguais para todos e o igual respeito por todos. Claro que
também existem deveres especiais. Parentes, vizinhos ou colegas podem em
certas situações esperar mais, ou uma entreajuda diferente do que aquela de
estranhos. Tais deveres especiais também se aplicam em geral a certas relações
sociais. Por exemplo, os pais violam o seu dever de assistência quando
negligenciam a saúde dos seus filhos. A extensão destes direitos positivos é
muitas vezes indeterminada, claro; varia de acordo com o tipo, frequência, e
importância das relações sociais correspondentes. Quando um familiar distante
contacta ao fim de décadas com o seu primo surpreendido e o confronta com um
pedido para uma larga contribuição financeira por causa de uma situação de
emergência, dificilmente poderá apelar a uma obrigação moral, mas quando
muito a uma espécie de “ética” encontrada nas relações familiares (na
terminologia de Hegel uma, fundada na “Sittlichkeit” ou “vida ética”). Pertencer
a uma família alargada justificará prima facie um dever de ajudar, mas apenas
nos casos em que a relação actual dá origem à expectativa de que ambos podem
contar com o apoio do outro em situações similares.
Assim é que esta confiança fundada na Sittlichkeit das relações sociais informais
requere que sob condições de reciprocidade previsíveis um indivíduo “assegure”
os outros. Tais obrigações “éticas” enraizadas nos laços de uma comunidade
existente antes, tipicamente encontrada nos laços familiares, exibe três traços.
Alicerçam reivindicações exigentes ou supérfluas que vão para além das
obrigações morais ou legais. Por outro lado, quando chegamos à motivação
requerida para a exigência de solidariedade é menos exigente do que a força
categórica de um dever moral; nem é coincidente também com o carácter
coercivo da lei. Os mandamentos morais devem ser obedecidos pelo respeito da norma subjacente em si própria sem olhar para o cumprimento por parte de
outras pessoas, ao passo que a obediência à lei do cidadão é condicionada ao
poder estatal sancionatório que assegura o cumprimento geral. Cumprir uma
obrigação ética, em contraste, não pode nem ser imposto nem é
categoricamente requerido. Em vez disso depende das expectativas de favores
recíprocos – e na confiança desta reciprocidade ao longo do tempo.
A este respeito, um comportamento ético que não pode ser imposto também
coincide com o interesse próprio a médio e longo prazo. E é precisamente este
aspeto que a Sittlichkeit partilha com a solidariedade. Contudo, esta última não
pode assentar em comunidades pré-políticas como a família, mas apenas em
associações políticas ou interesses políticos partilhados. Uma conduta baseada
na solidariedade pressupõe contextos de vida políticos, logo contextos que são
legalmente organizados e neste sentido, por isso mesmo, artificiais. [15] Tal
explica porque é que o crédito de confiança que não é pressuposto pela
solidariedade é menos robusto no caso de uma conduta ética, uma vez que este
crédito não é assegurado pela mera existência de uma comunidade quasinatural.
O que está a faltar no caso da solidariedade é o momento da
convencionalidade de relações éticas pré-existentes.
O que dá à solidariedade ainda mais um carácter especial é, em segundo lugar, o
carácter ofensivo de exigências ou mesmo lutas para desfazer a promessa de
que é investida a reivindicação de legitimidade de qualquer ordem política. Esta
característica de olhar-em-frente torna-se particularmente clara quando a
solidariedade é requerida no decurso da modernização social ou económica, de
forma a ajustar as capacidades sobrecarregadas de um enquadramento político
existente, isto é, de ajustar a erosão das instituições políticas à força indirecta
das interdependências abrangentes sistémicas e maioritariamente económicas
que são sentidas como constrangimentos ao que deveria ser a amplitude do
controlo democrático dos cidadãos. Este traço semântico ofensivo de
“solidariedade”, por cima e acima da referência à política, pode ser elucidado no
desviar de uma clarificação conceptual não histórica, para a história do conceito.
O conceito de solidariedade apareceu primeiro numa situação em que os
revolucionários apelavam à solidariedade no sentido de uma reconstrução
redentora das relações de apoio mútuo que eram familiares mas que se tinham esvaziado pelos processos avassaladores da modernização. [16] Enquanto que
“justiça” e “injustiça” eram já alvo de controvérsia nas primeiras civilizações
alfabetizadas, o conceito de solidariedade é surpreendentemente recente.
Embora o termo possa ser encontrado na lei romana das dívidas, apenas desde a
Revolução Francesa de 1789 adquiriu lentamente um sentido político, contudo
inicialmente ligado ao slogan da “fraternidade”.
O grito de batalha pela “fraternité” é um produto da generalização humanista de
uma espécie de padrão de pensamento engendrado por todas as grandes
religiões – nomeadamente, a intuição de que a comunidade local de um
indivíduo é parte da comunidade universal de todos os crentes fiéis. Este é
contexto anterior da “fraternidade” como conceito chave de uma religião
secularizada da humanidade que se radica e funde com o conceito de
solidariedade durante a primeira metade do século XIX pelo primeiro
socialismo e pelos ensinamentos sociais católicos. Até Heinrich Heine utilizou
os conceitos de “fraternidade” e “solidariedade” mais ou menos sinonimamente.
[17] Estes dois conceitos separaram-se no decurso dos tumultos sociais da
aproximação do capitalismo industrial e dos movimentos operários nascentes. O
legado da ética judaico-cristã da fraternidade fundiu-se, no conceito de
solidariedade, com o republicanismo de origem romana. A orientação para a
salvação ou emancipação amalgamaram-se com aquela virada para a liberdade
legal e política.[18]
Até meados do século XIX, uma diferenciação funcional acelerada da sociedade
deu lugar a interdependências extensivas por detrás de uma mundivivência
paternalista, ainda largamente corporativa e ocupacionalmente estratificada.
Sob a pressão destas dependências funcionais recíprocas as formas antigas de
integração desconstruíram-se e levaram ao aparecimento de antagonismos de
classe que foram finalmente contidos apenas dentro de formas extensivas de
integração política do Estado-nação. Os apelos de “solidariedade” tinham tido a
sua origem na dinâmica das novas lutas de classe. As organizações dos
movimentos operários com os seus bem fundamentados apelos à solidariedade
reagiam à situação gerada pelo facto dos constrangimentos sistémicos,
principalmente económicos, terem desmontado as antigas formas de
solidariedade. Os operários socialmente desenraizados, os empregados e os trabalhadores deveriam formar uma aliança para além das relações sistemáticas
de competitividade geradas pelo mercado de trabalho. A oposição de classes
sociais no capitalismo industrial estava finalmente institucionalizado dentro do
enquadramento de Estados-nação democraticamente constituídos.
Estes Estados europeus assumiram a sua forma actual de Estados sociais apenas
depois da catástrofe de duas guerras mundiais. No decurso da globalização
económica, estes Estados encontram-se, por sua vez, expostos a uma pressão
explosiva de interdependências económicas que agora tacitamente permeiam as
fronteiras nacionais. Os constrangimentos sistémicos fragmentam novamente
as relações estabelecidas de solidariedade e levam-nos a reconstruir as formas
ameaçadas de integração política do Estado-nação. Desta vez, as contingências
sistémicas incontroladas de uma forma de capitalismo movido pelos mercados
financeiros desregulados são transformadas em tensões entre os Estadosmembros
da União Monetária Europeia. Se queremos preservar a União
Monetária, já não é suficiente, dados os desequilíbrios estruturais entre as
economias nacionais, providenciar empréstimos a Estados sobre-endividados
para que cada um melhore a sua competitividade pelos seus próprios meios. O
que é exigido, ao invés, é a solidariedade, o esforço cooperativo de uma
perspectiva política partilhada de promover o crescimento e a competitividade
da zona euro como um todo.
Tais esforços requerem que a Alemanha e diversos outros Estados aceitem os
efeitos de uma redistribuição negativa a curto e médio prazo, em nome do seu
interesse de longo prazo – um exemplo clássico de solidariedade, pelo menos na
análise conceptual que apresentei.
Prof. Jürgen Habermas in gestaoculturalesad.files.wordpress.com