Os óculos de Francisco - por Afonso Camões

É profético aquele filme de Nanni Moretti, que já todos vimos, em que Michel Piccoli, no papel de Papa, sufocado pela intriga e pela clausura do Vaticano, se evade à cúria para vaguear e sentir, sozinho, o bafo do povo pelas ruas de Roma.
É todavia bem real este Jorge Bergoglio, que ainda esta semana desceu à rua para entrar numa loja de ótica e mudar as lentes dos óculos, só as lentes, que a armação acessória continua em bom estado e ele "não queria gastar muito".
Quem vê mal e também não quer gastar muito com um assunto olhado meses a fio como acessório e de soslaio são os dirigentes europeus que se reúnem, terça-feira, para tentarem acordar, num esquema de repartição por quotas, o acolhimento do maior contingente de refugiados que demanda a Europa em várias gerações.
Como quem "divide um mal pelas aldeias", há meio ano que a Comissão Europeia esbraceja por um acordo entre os sócios da União. Nas contas de abril, havia que repartir 40 mil refugiados e a Portugal caber-nos-ia receber à volta de 1700. O problema, que então era acessório, é agora uma emergência. A conta de Bruxelas vai em 120 mil, cabendo a Portugal uma quota de 3074 refugiados que começam a chegar nos próximos dias. Acontece que a desgraça amontoada nos campos ou salva dos naufrágios no Mediterrâneo não espera nos sofás do Berlaymont. O número global de refugiados cresce a cada dia e já ultrapassa os 600 mil em solo europeu.
É então que intervém o Papa, num apelo para "que cada paróquia, cada comunidade religiosa, cada mosteiro, cada santuário da Europa acolha uma família" de refugiados. Fê-lo em tom de grave urgência, por ocasião do Angelus.
Uma simples família de duas ou três pessoas por paróquia, senhores!
Ajudemos pois Jean-Claude Juncker e seus pares nas suas contas: Só na Alemanha, França e Itália, estão contabilizadas mais de 50 mil paróquias, sem contar com as comunidades religiosas e mosteiros. Em Portugal, são 4380 paróquias...
Uma família por paróquia, senhores!
Com uma simples mudança de lentes nos seus óculos, Bergoglio vê mais, melhor e mais longe que os líderes da União Europeia, ao acrescentar uma solução prática e equitativa para o drama dos refugiados: uma família por cada paróquia. Trata-se de um gesto que multiplica o que alguns dirigentes, os portugueses incluídos, estão dispostos a admitir para responder ao infortúnio dos fugidos da guerra e da fome. E dos milhares de outros que ainda hão de vir.
Afonso Camões in jn.pt