Os trapos da UE

A criança parece de pano, um boneco de trapos em tamanho real deixado na orla da praia neste fim de verão por uma família apressada como tantas outras quando voltam para casa ao entardecer depois de um dia ao sol. Um boneco, uma cópia da vida, só pode ser isso. Sabemos no entanto que não é assim. Sabemos desde o primeiro segundo em que carregamos na seta do vídeo para ver o indizível acontecer que aquele não é um boneco, não é uma réplica do Pinóquio, não é mentira nenhuma, não é jogo nenhum, é uma criança de carne e osso, com pai e mãe e avós, já sem pai e mãe e avós, já sem nome e já sem vida, que ficou para ali a rolar na areia - não rebola, só as crianças vivas rebolam -, para cima e para baixo, sapatos nos pés, trazida pela força deste mar tão verdadeiro e tão indiferente ao que lá acontece. É uma criança morta que está ali, na areia, até que alguém finalmente a recolhe e pega ao colo, e então já não conseguimos suportar mais a brutalidade, a bestialidade, a indiferença de tudo isto, a vergonha, a nossa, individual e coletiva, a tragédia destes políticos que julgam possível pedir calma perante isto sem perceber que pedir calma significa ser cúmplice. Não esqueceremos tão depressa esta maldita praia turca que poderia ser uma maldita praia em Itália ou na Grécia ou em Espanha ou em Portugal, no Algarve, ou noutro lado qualquer do mundo. Mas é aqui que isto está a acontecer. Há muitas mais crianças e homens e mulheres a morrer todos dias no Mediterrâneo; e isso aumenta a raiva por estas políticas europeias que nem com fórceps conseguem parir uma ideia, uma decisão, quanto mais um gesto humano digno e consequente. Há um ano que estamos nisto e quase nada, muito pouco, nem deste lado da fronteira nem do outro, e é preciso agir lá e cá, com humanidade, mas também com ferocidade - sim, guerra ao Estado Islâmico. Marcel Duchamp, pintor, escultor e poeta, um dia pediu à irmã que pendurasse no estendal de casa um livro de geometria, para que, expostos ao vento, ao sol e à chuva, os teoremas percebessem os factos da vida. Apetece fazer os mesmos aos políticos europeus. Talvez assim percebessem. Mas não é certo.
André Macedo in DN.pt