Literatura e Filosofia por Cândido Pimentel

Literatura. Filosofia. Por onde decidir? A hermenêutica filosófica aproximou-se da análise literária e suas teorias. E aqueles que de mais perto lidam com a ciência da literatura e ao mesmo tempo se situam no domínio da especulação filosófica não podem deixar de constatar o diálogo significativo que, sobretudo no decurso da segunda metade do século XX, aqueles domínios, em princí- pio historicamente separados, têm mantido. Apesar de ser a hermenêutica filosófica a principal responsável por ter envolvido a filosofia nos temas e problemas da literatura, a aproximação está longe de ser pacífica entre os filósofos, e pelo que pudemos de modo geral verificar, a abordagem do texto filosófico entre os teóricos da literatura não apresenta contornos definidos, imperando o consenso geral de que esse tipo de discurso desorbita do domínio da literatura. Embora reconheçam a possibilidade do seu estudo aplicando-lhe os modelos da análise literária, esta aplica- ção está longe de ter sido suficientemente teorizada. A questão, na realidade, abala mais os filósofos, que podem sentir os seus domínios ameaçados, do que os teóricos da literatura, daí que alguns daqueles mais rapidamente exorcizem, de modo claro ou não, qualquer contacto ou suspeita de contágio com a interpretação literária, precisamente pelo suposto de que o texto filosófico é um corpo à parte, o que se poderia resumir na fórmula de que um tal texto deve ser tratado como uma entidade não literária, com uma especificidade outra que não a da literatura. Claro que, já aqui, se questionaria a ideia do que seja o não-literário: perguntando se a filosofia é integrável nas categorias, por exemplo, da não-arte, da não-poesia ou da não-narrativa, se pertencerá ao discurso meramente informacional como o da prosa jornalística ou do informacional demonstrativo como o científico, se utiliza a linguagem natural sem instituir desvios, construir mundo, fazer nascer e descobrir sentidos. É possível que a mera comparação de todas estas práticas discursivas redundasse em fracasso e nada provasse da natureza do texto filosófico. Filosofia ou literatura? Por onde decidir? Estaremos em posição de responder que o texto filosófico é literário e que não há pertinência em distinguir filosofia e literatura? Que razões se ocultam numa substantiva- ção do tipo: Toda a filosofia é literatura? Mas que 'tipo' de literatura é a filosofia? Quase literatura? Paraliteratura? O que é, pois, o literário, e o que é, antes e depois, o filosófico?
A opção por uma teoria da identidade da filosofia com a literatura tem de rodear-se de certas precauções, do mesmo modo que uma teoria que as desvincule necessita de justificar-se por igual. É até possível que ambas tenham razão, ou, pelo menos, algumas razões que cumpriria reflectir. Uma e outra são teorias normativas no sentido em que procuram debruçar-se sobre os explícitos e os implícitos da linguagem filosófica, da constituição ou construtividade do seu discurso. Terão presente, de modo mais ou menos longínquo, próximo ou menos explícito, normas ou critérios que permitam assinalar identidades e (ou) diferenças? Se têm, quais são?, posto que se respondem à questão - a filosofia é literatura? é forçoso concluir que, de uma forma ou de outra, possuem predicamentos de juízo e, eventualmente, o segredo ou o sortilégio do que distingue e do que une. Multipliquemos ainda mais as interrogações para nos pormos no centro desta complexidade. Onde encontrar a fronteira que separa ou que une literatura e filosofia? O que é que nelas existe ou preexiste de comum?... Outra é a questão sobre o modo e as funções que as formas literárias têm assumido no discurso filosófico. Haverá aí algo que distinga o processo como o poético e o narrativo têm encarnado na história literária do procedimento por que a filosofia os tem assumido? Que sentido (heurístico?) tem a hermenêutica filosófica quando se vira para a compreensão e a explicação do texto poético e do texto ficcional? Como e até que ponto podemos considerar este ou aquele texto poético um texto filosófico, verificando que também a poesia parece assumir o filosófico no ponto de vista dos seus conteúdos? Estamos longe de poder responder a tudo como desejaríamos, por dois motivos: primeiro, porque uma tal tarefa excede as limitações do presente trabalho, o que nos deixa no plano mais problemático das indicações e das sondagens; segundo, porque, perante o oceano, o barco não constitui critério suficiente para estabelecer a rota no labirinto de que não possuímos o mapa. Porém, e com a consciência de tais restrições, tentaremos focar as questões em bloco, até porque todas elas estão interligadas, e responder a uma é dar réplica às outras ou abrir caminho para elas. Começaremos por estabelecer a seguinte verdade: assim como em literatura, toda a obra filosófica é criada por referência e oposição a outras obras, onde a continuidade e a descontinuidade desfavorecem qualquer tentativa monolítica de substituir a história por um nível de exegese em que o seu contexto desaparecesse. Pensar filosoficamente é escrever e inscrever a obra no vasto sistema da produção filosófica, agir e reagir reflexivamente no seio da dialéctica da tradição-invenção do pensamento. Esta perspectiva tem de ser enquadrada como pano de fundo das respostas às questões formuladas e articulada com o tema da literariedade e a emergência do modelo retórico, que iremos tratar, apenas acrescentando, no que respeita ao segundo, que tal modelo será encarado como princípio de normatividade e posto na sua relação com o discurso em filosofia e com as posições hermenêuticas de apropriação filosófica do texto literário (nomeadamente o poético), direcções possivelmente capazes de inquietar o que se oculta sob o véu de maia dos questionamentos que agitámos.

Manuel Cândido Pimentel in centrodefilosofia.com