Portugal são dois

Existem dois países diferentes lutando em Portugal. Esta afirmação não espanta, pois há séculos que várias classificações referem uma dicotomia lusitana. Absolutistas e liberais, monárquicos e republicanos, fascistas e democratas, ricos e pobres, esquerda e direita, múltiplas bifurcações foram ventiladas para explicar a situação nacional. Hoje, nenhuma dessas alternativas é relevante. O embate é novo, mas igualmente decisivo.
Ao entrar na Europa, em 1986, Portugal apresentava a dualidade típica de país em transformação. Sectores abertos, dinâmicos e integrados confrontavam segmentos arcaicos, reclusos, obsoletos. Graças ao apoio europeu, mas também à capacidade nacional, as décadas seguintes foram espantosas, conseguindo-se uma evolução notável em todos os níveis. Tudo mudou, das infraestruturas à especialização, das condições sociais aos hábitos e atitudes dos cidadãos. A antiga clivagem entre o Portugal progressivo e anacrónico foi-se esbatendo, deixando de ser decisiva. Hoje, em qualquer zona, sector ou actividade, estamos no mesmo país, aberto, moderno, europeu. Temos problemas, como todos, mas vivemos ao nível comunitário.
Sanada a antiga clivagem, surgiu uma nova. No meio do notável progresso foi ganhando preponderância um terrível veneno: o dinheiro fácil. Era a velha peçonha da pimenta da Índia e do ouro do Brasil, agora regressada na forma de fundos europeus e empréstimos internacionais, sem sequer exigir viagens e epopeias. Nos primeiros anos, a infecção foi dominada pelas exigências da adesão à comunidade e à moeda única, mas, logo que o sucesso ficou garantido, o vírus grassou sem entraves. Assim nasceu a primeira ruptura do Portugal desenvolvido.
A nova dicotomia não está nas condições de vida, mas na atitude perante ela. A evolução das últimas décadas, inserindo o país na economia global, trouxe consigo desafios e direitos. O novo Portugal está dividido segundo estes dois elementos. Em todos os níveis da sociedade surgiram duas mentalidades diferentes no que toca ao desenvolvimento. Há os que enfrentam os desafios e os que exigem direitos, os que procuram vencer num mundo em transformação e os que reivindicam o ganho, omitindo a necessidade de o obter.
A principal dificuldade da nova dualidade é a sua subtileza. Ao contrário de 1986, não é fácil hoje identificar cada lado, porque todos pertencemos ao mesmo país, aberto, moderno, europeu. Por isso as duas linhas manifestam-se em todos os sectores, partidos, forças e interesses. O contraste não é de trabalhadores e empresários contra corruptos e parasitas, mas entre os que produzem mais ou menos do que aquilo que recebem. Ou melhor, entre os que determinam os seus ganhos pelo que criam e os que reivindicam direitos abstratos, superiores ao que lhe é devido. Os que vêem o país e a Europa como exigência ou garantia. Mesmo as pessoas activas, ocupadas e produtivas podem estar infectadas pelo dinheiro fácil, auferirem mais do que geram e acabando do lado oportunista.
O Estado transformou-se no grande mecanismo para retirar às forças produtivas, distribuindo aos influentes, embora a banca e outras redes também colaborem. Por isso o sinal mais evidente do poder das forças de protesto é o défice do Orçamento. As despesas públicas são declaradas incompressíveis, mesmo que não haja dinheiro para as pagar. Após anos de intensa austeridade, a dívida ainda cresce e as contas continuam por saldar. A solução é aumentar os impostos sobre quem produz ou invocar um crescimento mítico que servirá para pagar todas as exigências e promessas. Crescimento que ninguém sabe de onde vem, com as empresas espremidas pelo fisco. Acredita-se que alguém vai reembolsar os direitos dos portugueses. Não de todos os portugueses, mas dos que se conseguem impor.
Na dualidade, os dois lados não têm a mesma visibilidade, pois a face oportunista e reivindicativa monopoliza as atenções. A informação anda cheia de exigências, não de esforços; de desilusões, não de diligências; de acusações, não de investimentos. Fala-se mais dos funcionários do que dos pobres, dos pensionistas do que dos trabalhadores, dos subsídios do que dos inovadores.
Com o debate tão enviesado, afirmar que Portugal são dois significa chamar a atenção para a existência, apesar de tudo, de um país sensato, produtivo e laborioso, comprometido no futuro, criando já um surto de desenvolvimento. Os obstáculos levantados pelo outro Portugal são inúmeros, mas a luta continua. Ainda é cedo para determinar quem vencerá, mas o sucesso nacional depende disso.
João César das Neves in dn.pt