Religião, filosofia e argumentação

Sempre que, em qualquer post, há algo que tem a ver com a religião, chovem os comentários. É um tema popular. E é bom que as pessoas estejam dispostas a discutir abertamente a religião. Contudo, sinto-me sempre algo incomodado com isso.
Porquê? Porque uma das regras centrais da argumentação é a igualdade entre quem argumenta. Não pode haver verdadeira argumentação sobre a matemática dos fluidos entre um especialista na área e eu porque eu nada sei sobre tal coisa. Para eu poder discutir o que quer que seja com tal especialista, tenho primeiro de dominar a matemática dos fluidos, o que implica um estudo de alguns anos. Caso contrário, o tal matemático pode até ser um sacana que me está a enganar e eu não posso saber.
É por isso que nunca me sinto bem a discutir temas religiosos com as pessoas que desconhecem a filosofia: eu estou numa posição de vantagem porque conheço os argumentos a favor da existência de Deus, e respectivas objecções; conheço os pensadores que fazem desse tema o ponto central da sua investigação; e por isso, mesmo não sendo a filosofia da religião a minha especialidade em filosofia, estou numa situação de vantagem ilegítima relativamente aos crentes que procuram demolir as minhas ideias ateias e justificar as suas ideias religiosas. Por essa razão, irei abster-me de discutir aqui temas religiosos. Irei apenas oferecer indicações objectivas sobre as dificuldades deste ou daquele argumento, e falarei de questões metodológicas. Indicarei também bibliografia — se bem que tenho sempre a desagradável sensação de que a maior parte das pessoas quer apenas conversa de café amena sobre estes temas, e não estudar cuidadosamente nem que seja um livrito ou dois.
Para encerrar, vou responder ao leitor Bernardo Motta, que respondeu ao meu post “Será Razoável Acreditar em Deuses sem Provas?”, abandonando muito amavelmente o anonimato (a conversa até sabe melhor assim). Note-se também que o meu post não procurava argumentar directamente a favor do ateísmo, mas apenas apresentar uma questão metodológica geral, sobre a irrazoabilidade de acreditar em algo sem provas, mas a sua relativa inevitabilidade (porque somos humanos, demasiado humanos).
O Bernardo fala do seu axioma (a origem divina da revelação), mas a questão é precisamente saber se esse axioma é razoável ou verdadeiro. É irracional aceitar axiomas à balda, ou porque dão jeito, ou porque são verdes, apesar de ser uma cor bonita. Que razões há para pensar que há deuses, capazes de se revelarem? Serão boas? Melhores do que as razões para pensar que não há deuses capazes de tal coisa?
Protestou o Bernardo contra a ideia de haver muitos deuses e argumentou que não pode haver mais de um infinito. Isto não é estritamente verdade (há, de facto, mais de um infinito, e infinitos maiores uns do que outros), mas o mais incrível é a sua identificação do infinito com o seu Deus — ora, há muitas concepções de deuses, e nem todas proclamam que tais deuses são infinitos. Ao longo da história da humanidade a esmagadora maioria das comunidades era politeísta — e não estamos apenas a falar de comunidades pouco sofisticadas, mas de algumas das civilizações mais sofisticadas. Na verdade, todos os crentes são ateus em relação a uma imensidão de deuses — Vixnu, Zeus, Apolo, Ámon, Rá, Mitra, Baal, Tor, Wotan, etc. Só não são ateus em relação ao seu deus ou deuses.
Finalmente, serão os filósofos crentes tolos? Note-se que, ao contrário do que o Bernardo afirma, não são apenas os filósofos pré-cartesianos que eram crentes. Há filósofos crentes depois de Descartes (como Leibniz — e o próprio Descartes era católico); e há filósofos contemporâneos crentes, como Swinburne ou Plantinga, que desenvolveram argumentos extremamente sofisticados, hoje muito estudados.
Serão então tolos? Não. Penso apenas que estão enganados. Penso que os argumentos deles não funcionam e é por isso que sou ateu. Há muitos filósofos que dizem isso mesmo. Por isso não podemos limitar-nos a escolher as autoridades que nos apetecer, para basear nelas o nosso juízo; dado que as autoridades na matéria discordam, temos de pensar por nós próprios. Não podemos fazer como o Bernardo: escolhe os filósofos crentes, como Tomás de Aquino, e ignora tranquilamente os outros.
Escolher as autoridades que concordam connosco e ignorar as outras é um dos piores vícios intelectuais: é o mesmo que a supressão de provas. Se embarcarmos nesta prática, conseguimos provar tudo, incluindo que há Zeus e fadas e o Pai Natal. E este é o grande problema dos argumentos do Bernardo: limitam-se a escolher os dados favoráveis à sua crença, ignorando tudo o resto. Por exemplo, o Bernardo fala da autoridade das palavras de Jesus; mas todas as religiões tiveram os seus profetas, alguns tão historicamente reais como Jesus, como é o caso de Buda. Além disso, uma religião pode pura e simplesmente recusar como herética a ideia de que os seus deuses possam ter manifestações corpóreas, encarando tal exigência como um sinal de falta de fé da parte do crente. Na religião vale tudo porque estamos no domínio da arbitrariedade: é como escrever um romance; cada qual inventa o que lhe apetecer.
Por isso, insisto: não vejo mal em acreditar no deus cristão tal e qual como uma pessoa usa um microondas: desconhece os seus fundamentos e não sabe se não haverá uma maneira melhor de aquecer o leite. Apenas vai na onda, se me for permitido o trocadilho. Afinal, não podemos ser todos físicos, para saber mesmo como funcionam os microondas, nem podemos ser todos filósofos da religião, para saber como funcionam os argumentos a favor da existência de deuses e respectivas objecções. E do mesmo modo que eu não vou declarar que sei tudo sobre microondas, é avisado da parte dos crentes fazer o mesmo em relação à sua religião, e aceitar que acreditam nela unicamente porque lhes dá jeito, emocionalmente falando, porque foram educados dessa maneira, e porque escolheram arbitrariamente aceitar a autoridade uma dada seita cristã em vez de outra, cristã ou não. É razoável? Não. Mas os seres humanos nem sempre são tão razoáveis quanto é desejável que fossem.
Claro que há pessoas como o Bernardo que, com mais diligência intelectual do que a esmagadora maioria dos crentes, procura informar-se, estudando os filósofos especialistas na matéria. Isso é saudável.
Mas há algo de estranho na ideia de que o Bernardo estaria disposto a abandonar a crença em Deus caso verificasse que a balança da argumentação não pende a seu favor; isto porque é estranho pensar que uma pessoa é crente por ter boas razões para tal coisa. O próprio Bernardo, como a generalidade dos crentes, recusa desde logo esta ideia; e de facto a epistemologia da crença religiosa é bizarra precisamente por causa disso. O facto é que os crentes não são crentes por terem razões, mas antes porque tiveram experiências emocionais que os levam a ser crentes, ou porque nunca pensaram muito nisso e foram educados assim, ou por pura superstição. É por isso que tantos crentes declaram, e com alguma razão, que é inútil “esgrimir” argumentos sobre a existência de Deus. Esta perspectiva parece-me mais honesta e mais próxima do fenómeno religioso real; não acredito que o Bernardo seja crente por causa dos argumentos de Tomás de Aquino ou por causa de quaisquer outros argumentos históricos relativos à revelação divina ou a divindade de Jesus. Acho que ele primeiro é crente e só depois, por ser crente, aceita a divindade de Jesus, e a revelação e os argumentos de Tomás de Aquino.
Outra coisa diferente é a discussão filosófica sobre a existência de Deus. Mas isso é uma discussão académica como qualquer outra. Não me parece é que tenha o poder para fazer muitos crentes mudar de ideias, porque as pessoas acreditam geralmente em deuses por outros motivos que não as razões a favor ou contra. Se isso não fosse assim, o Bernardo não iria estudar apenas os filósofos que já sabe à partida que aceitam a existência de Deus. Quando uma pessoa quer saber se realmente é melhor mudar o óleo do carro quando o motor está quente, não vai procurar apenas quem afirma que realmente é melhor fazer isso — terá até tendência para procurar mais intensamente quem defende que não é bom fazer tal coisa. Procurar falsificar ideias faz parte da metodologia natural da procura da verdade. Quando procuramos apenas os filósofos que já concordam connosco quanto à existência de deuses, isso significa que não estamos realmente à procura da verdade, mas apenas a tentar racionalizar uma crença que nada tem originalmente de razoável.
Daí que o Bernardo baseie o seu comentário na ideia falsa de que os ateus são ateus porque são empiristas ou positivistas lógicos, mais ou menos como os cientistas têm tendência para ser. Se tivesse estudado algo da filosofia da religião contemporânea, ou da metafísica, saberia que isto é falso. Dificilmente se encontra hoje filósofos positivistas, e eu não sou um deles, mas no entanto muitos são ateus e apresentam os seus argumentos e ideias nas revistas académicas da especialidade. Nem eu nem a maior parte dos filósofos actuais recusa a metafísica — na verdade, eu dou aulas de metafísica, e a metafísica da modalidade é a minha área de especialização. Mas aceitar que nem tudo o que há tem localização espácio-temporal, como eu ou Russell ou tantos outros filósofos aceitam, não implica de modo algum aceitar que há deuses.
Desidério Murcho in dererummundi.blogspot.pt