A maldição da filosofia

Calculo que outros académicos, noutras áreas, sintam a mesma maldição dos filósofos e por isso vale talvez a pena dar-lhe voz publicamente. Muitas pessoas, mesmo sem jamais terem lido um só livro sério de divulgação ou introdução à filosofia, têm muitas opiniões firmes sobre qualquer tema da filosofia — da ética à metafísica, da epistemologia à filosofia da religião, da estética à filosofia da mente. Em si, isto é saudável — quer dizer que em filosofia trabalhamos com problemas que interessam a qualquer pessoa, e não com fantasias irrelevantes. Afinal, as pessoas também têm opiniões e ideias intuitivas sobre a queda dos corpos, a velocidade, a aritmética — não precisam de ter cursos e formação avançada em física e matemática para terem ideias sobre isto. Têm ideias sobre essas coisas porque essas coisas fazem parte da vida. Claro que um estudo aprofundado revela que muitas dessas ideias intuitivas que temos estão erradas — os corpos mais pesados, por exemplo, não caem mais depressa do que os mais leves, em condições de igual atrito.
A maldição da filosofia é que nos acontece o que não acontece aos matemáticos, aos biólogos ou aos físicos — nem sequer aos historiadores. A maldição não é sequer muitas pessoas pensarem que as suas ideias intuitivas e sem quaisquer conhecimentos bibliográficos são tão boas como as de um especialista na área. A verdadeira maldição é outra: é que nem estão interessadas em estudar. Não digo tirar um curso de filosofia, apesar de isso ser uma excelente ideia — e não vejo por que razão não há mais pessoas a fazê-lo, mesmo depois de terem a sua vida formada. Refiro-me a uma coisa mais modesta, que é o que eu faço com a ciência: leio livros de divulgação, e leio os cientistas com atenção. E não me ocorre supor que sei tanto de matemática como um matemático ou que sei tanta biologia como um biólogo.
A maldição talvez tenha uma razão de ser: a ilusão dos resultados. Quem resiste a estudar filosofia apesar de insistir em falar de problemas filosóficos talvez tenha uma concepção errada de estudo. Para essa pessoa faz sentido estudar física porque em física há resultados, e estudar é dominar esses resultados: passar a dominar o conhecimento sólido, estabelecido, seguro. Como em filosofia não há praticamente resultados, mas sim problemas em aberto, não vale a pena estudar filosofia e uma opinião de café vale tanto quanto a minha.
O erro disto devia ser evidente. Um detective pode aprender muito sobre um crime investigando activamente, ainda que acabe por não conseguir descobrir o culpado. Mas aprende imenso na investigação. Claro, a investigação não lhe permitiu responder "Foi o Zé que roubou a hortaliça!", mas saberá muito mais do que o investigador preguiçoso que, porque tem a convicção de que ninguém pode realmente saber quem foi, se limitou a ir para o café espalhar preconceitos mal pensados e pior informados sobre quem terá roubado o diabo da hortaliça.
Desidério Murcho in criticanarede.com