A retórica como método da filosofia

(...) Entendida como um conjunto de técnicas que permitam uma troca clara, honesta e frutuosa de ideias e argumentos, a retórica é de grande interesse para a filosofia. Mas, como certamente já percebeste, não é neste sentido que a palavra «retórica» é vulgarmente entendida e também não é nesse sentido que foi entendida na antiguidade ou actualmente por quem quer fazer dela o método da filosofia.
Os filósofos que na antiguidade deram mais atenção à retórica, Platão e Aristóteles, não tinham uma opinião muito favorável a seu respeito. Platão recusava-lhe o estatuto de arte e considerava a persuasão obtida por seu intermédio uma mera forma de adulação e manipulação. Aristóteles não vai tão longe quanto o seu mestre e tem uma posição idêntica à defendida por Górgias no diálogo de Platão com o mesmo nome: a retórica é uma arte e pode ser usada tanto de forma justa como de forma injusta. Como investigador, Aristóteles estava interessado em compreender e explicar o poder persuasivo da palavra e como homem viu demasiadas vezes a verdade e a justiça serem vencidas pelo facto de o auditório ser incapaz de seguir as cadeias de argumentos necessárias para as suportar. Isso explica o seu interesse pela retórica e por que razão a considerava útil nos tribunais e nas assembleias. Mas não devemos tirar daí a conclusão de que a considerava de alguma utilidade para a filosofia. Não é a retórica mas antes a demonstração e a dialéctica que Aristóteles considera de interesse para a filosofia. E isso porque permitem descobrir a verdade.
Os seguidores modernos de Aristóteles, como Perelman, acerca deste ponto não pensam como ele: acham que o filósofo precisa de conquistar a adesão do auditório para os seus pontos de vista e que, portanto, a retórica é o método da filosofia. Esta concepção da filosofia e do seu método têm fundamento na ideia de que não há uma verdade única sobre um dado assunto, mas várias verdades. Esta é a mesma ideia que Protágoras defendeu na antiguidade quando disse que «o homem é a medida de todas as coisas», a que se dá geralmente o nome de relativismo. O relativismo é uma teoria bastante atraente e parece a muitas pessoas obviamente verdadeira. A ideia de que a retórica é o método da filosofia parece assim estar bem fundada. No entanto, há boas razões para a recusar. Vejamos apenas três:
1. A filosofia procura formular teorias verdadeiras. Uma vez que a retórica é apenas um método de persuasão e não de descoberta da verdade, se fosse o método da filosofia, qualquer teoria seria admissível desde que fosse verosímil, isto é, desde que o filósofo fosse capaz de a apoiar com argumentos, metáforas e analogias e, desse modo, conquistar a adesão do auditório. Nestas circunstâncias, a filosofia seria apenas um jogo de interpretações que seria ganho por aquela que fosse capaz de melhor persuadir o auditório e a retórica seria o instrumento com que esse jogo se jogaria; portanto, o que dissemos sobre a filosofia seria falso e os filósofos não teriam como objectivo formular teorias verdadeiras. Contudo, sem esse objectivo a filosofia seria apenas uma especulação estéril e inútil.
Não deves pensar, pelo que acabámos de dizer, que toda e qualquer interpretação é desnecessária ou inútil. A interpretação tem um papel importante em filosofia, assim como em qualquer outra actividade humana. Sem ela não há comunicação e não podemos sequer conhecer as teorias filosóficas com as quais os filósofos pensam poder resolver um problema.
Supõe, por exemplo, que alguém te pergunta qual a distância entre Vila Franca de Xira e Lisboa. Se não fosses capaz de interpretar, de compreender, o que te foi dito, teria sido inútil fazer-te a pergunta. A incapacidade de interpretação resultaria nesse caso numa incapacidade de comunicação. E sem ela, toda a troca de ideias, mesmo sobre os assuntos mais triviais, seria impossível.
Mas será que basta sermos capazes de fazer interpretações? Supõe que respondes à pessoa que a distância é de 30 km. De acordo com a ideia de que tudo é interpretação, a tua resposta é ainda e só uma interpretação. Supõe agora que, ao mesmo tempo que respondias, dois colegas que estavam contigo diziam respectivamente 25 km e 20 km. Agora, em vez de uma, temos três respostas e, portanto, três interpretações diferentes. Isto, contudo, não nos parece satisfatório. Queremos saber também quem tem razão, isto é, qual das respostas é verdadeira. No entanto, a ideia de que tudo é interpretação e de que a retórica é o método da filosofia não nos permite ir mais longe. Usando a retórica, tudo o que podemos fazer é tornar uma das respostas mais verosímil, isto é, fazer com que os outros pensem que essa resposta é verdadeira ou que tem maior probabilidade de ser verdadeira. Certamente já viste o ponto de vista de alguém ser adoptado porque foi capaz de dizer uma chalaça e desse modo desacreditar a posição da pessoa com que discutia. Mas, claro, isso não significa que esse ponto de vista seja efectivamente verdadeiro e pode até acontecer que seja falso.
As coisas não são diferentes se se tratar de um problema filosófico em vez de um problema trivial como a distância entre Vila Franca de Xira e Lisboa. Supõe que alguém te pergunta, por exemplo, o que pensas da eutanásia. Supõe ainda que, por hipótese, adoptas uma posição segundo a qual a eutanásia está errada porque constitui uma forma de assassínio. Essa tua posição, de acordo com a teoria, é apenas uma interpretação. Supõe ainda que os teus amigos ouvem a pergunta e que um deles responde, por exemplo, que se o acto de eutanásia aumentar a felicidade de todos os envolvidos, então é um acto correcto, enquanto o outro afirma que a eutanásia é errada porque degrada o carácter daqueles que a praticam. Agora, em vez de uma só interpretação, temos três. Aqui também, de acordo com a tese que estamos a discutir sobre a filosofia, devemos recorrer à retórica. Mas, uma vez mais, o uso da retórica não permite saber qual dos pontos de vista sobre a eutanásia é verdadeiro ou provavelmente verdadeiro. Tudo o que a retórica permite é persuadir o auditório de que um desses pontos de vista é verdadeiro ou provavelmente verdadeiro, o que, obviamente, não é o mesmo. Mas isto significa queparámos onde a discussão filosófica devia começar. Era a partir daqui que as diferentes respostas poderiam ser confrontadas e os argumentos com que cada um justifica a sua posição poderiam ser criticamente avaliados. Assim, a tese de que a filosofia é interpretação e de que a retórica é o seu método é, no fundo, a tese da morte da filosofia e da investigação racional.
2. O relativismo é contraditório. O relativismo é a teoria segundo a qual não há verdades universais e absolutas e que, consequentemente, todas as verdades são relativas a indivíduos, a sociedades e a culturas. Uma forma rápida de colocar o relativismo em dificuldades é perguntar se esta afirmação é ela mesma relativa ou universal e absoluta. É que se é relativa, então é verdadeira apenas para os indivíduos, sociedades ou culturas que a aceitam e falsa para todos os outros. Se, pelo contrário, esta ideia não é relativa, mas universal e absoluta, então há verdades universais e absolutas. Em qualquer dos casos, o relativismo contradiz-se.
3. A retórica pressupõe a crença do auditório na verdade. Pior que isto é talvez o facto de a eficácia da retórica pressupor a crença do auditório na existência da verdade. Quando um orador argumenta, tem por objectivo obter a adesão do auditório às ideias que defende. O auditório, por seu lado, aderirá ou não a essas ideias consoante elas lhe pareçam ou não verdadeiras ou, se se trata de assuntos em que a verdade não é fácil de determinar, consoante lhe pareçam terem maior ou menor probabilidade de serem verdadeiras. Em qualquer dos casos, quando o auditório adere aos pontos de vista do orador é porque julga que esses pontos de vista são verdadeiros ou, na pior das hipóteses, que têm mais probabilidades de serem verdadeiros. Assim, quando o orador usa a retórica, está a explorar e a servir-se desta tendência do auditório para a verdade. Quando o auditório aceita as ideias do orador, fá-lo na convicção de que as teses apresentadas são verdadeiras ou mais provavelmente verdadeiras; mas como a retórica visa apenas a adesão, o orador está a manipular o auditório. Será este procedimento aceitável?
Mas se a retórica tem estas graves deficiências, como se explica que tenha tanta aceitação? Em primeiro lugar, porque o relativismo parece uma verdade evidente a muita gente. Quando, por exemplo, qualquer questão ética ou política suscita muita discussão nos órgãos de comunicação social, é fácil perdermos o rasto aos argumentos, ficarmos confusos e parecer-nos que, de alguma forma, é tudo uma questão de opinião e que cada um tem a sua.
Em segundo lugar, porque Perelman percebeu correctamente que é um erro reduzir a lógica à lógica dedutiva e que existem assuntos que não podem ser convenientemente tratados usando apenas esse tipo de lógica.
Contudo, quando tentou desenvolver esta ideia cometeu alguns erros e efectuou algumas confusões importantes. Um desses erros consistiu em pensar o seguinte:
A lógica dedutiva ou formal limita-se às áreas em que as premissas são inquestionavelmente verdadeiras; consequentemente, essa lógica é constringente.
Isto, obviamente, é um erro. Se um argumento é sólido, isto é, se tem forma válida e premissas inquestionavelmente verdadeiras, então a sua conclusão só pode ser verdadeira. Podemos então dizer, na linguagem de Perelman, que o argumento é constringente. Mas isso não significa que não possamos usar argumentos com forma válida e premissas que não são inquestionavelmente verdadeiras.
Como qualquer pessoa familiarizada com argumentação sabe, uma das estratégias para pôr em causa a conclusão de um argumento dedutivo é atacar as premissas. Se formos capazes de mostrar que uma das premissas é falsa, podemos dizer que não temos razões para crer que a conclusão seja verdadeira; e podemos dizer o mesmo se formos capazes de mostrar que uma premissa é duvidosa ou discutível. Mas isto não é o fim da discussão. Por exemplo:
Se o feto é um ser humano, o aborto é moralmente errado. 
O feto é um ser humano.
Logo, o aborto é moralmente errado.
Este argumento é um modus ponens e, portanto, tem forma válida. Assim, se quisermos contestar a sua conclusão, temos de atacar as premissas e de mostrar que pelo menos uma é falsa ou duvidosa. Claro está que se as premissas forem verdadeiras, a conclusão só pode ser verdadeira. Mas serão as premissas verdadeiras? Em particular, é a premissa «O feto é um ser humano» verdadeira? Como alguém que esteja familiarizado com o debate ético sobre o aborto fará imediatamente notar, grande parte da discussão passa por saber se o feto é ou não um ser humano. Isto significa que não sabemos se essa afirmação é ou não verdadeira. Contudo, podemos discuti-la e determinar a maior ou menor probabilidade de que seja verdadeira. Se for provável que seja verdadeira, fornece uma razão para pensarmos que é provável que a conclusão também o seja. Se, pelo contrário, for pouco provável ou mesmo improvável que seja verdadeira, não fornece.
Um partidário do uso da retórica dirá talvez que é precisamente devido a afirmações como «O feto é um ser humano» que a retórica se justifica. Com efeito, dirá ele, quando é preciso deliberar (por exemplo, quando é preciso legislar sobre o aborto) é por intermédio da retórica, da persuasão, que se escolhe entre as diversas teses em confronto. A prova disto é dada pelo largo uso da retórica nos tribunais. Isto leva-nos ao segundo erro cometido por Perelman:
Perelman confunde a forma como as coisas são com a forma como deviam ser, isto é, pensa que a forma como as coisas são estabelece como podem e devem ser.
É verdade que a retórica e a persuasão são frequentemente usadas em tribunais e noutras assembleias para resolver contendas cuja solução é difícil. Não é necessário estar muito atento para perceber que os debates políticos são também muitas vezes ganhos dessa maneira. Essa é uma descrição dos factos. Contudo, seria errado pensar que essa descrição é normativa, isto é, que podemos estabelecer o que devemos fazer com base nessa descrição.
Para compreendermos isto bem, usemos o exemplo do relativismo, não do relativismo cognitivo de que falámos, mas do relativismo moral. O relativismo moral consiste na ideia de que não há normas morais absolutas e de que todas as regras morais são relativas a sociedades e a culturas. O relativismo moral retira grande parte da sua força do facto de que cada sociedade e cada cultura tem as suas próprias regras morais: na Nigéria, uma mulher considerada adúltera pode ser apedrejada até à morte, enquanto em Portugal o adultério nem sequer é crime. Como descrição dos factos, é correcto dizer que cada sociedade e cada cultura tem as suas normas morais. Mas seria errado concluir daí que não há normas morais universais e absolutas. É que a ética não é descritiva, mas normativa. Não descreve como agimos, mas sim como devemos agir.
Algo semelhante acontece no domínio da argumentação. Dizer que em muitos domínios as pessoas usam a retórica e a persuasão quando têm de deliberar é, infelizmente, uma descrição correcta dos factos. Contudo, seria errado concluir que deve ser assim. É que neste caso também há alternativas: a lógica formal e informal, cujo objectivo não é a persuasão, mas a verdade. O principal erro de Perelman foi não ter percebido que a alternativa à lógica formal e ao irracionalismo não é a retórica, com os seus critérios psicológicos e sociológicos de adesão, mas a lógica informal, e que também naqueles domínios para os quais lógica formal é insuficiente existem, apesar disso, critérios objectivos que permitem determinar a probabilidade de uma afirmação ser verdadeira.
Álvaro Nunes in criticanarede.com