A história é sempre surpresa

A história do passado pode obedecer a critérios científicos, pode fornecer uma interpretação analítica consistente do que se passou e explicar por que razão se passou, mas não permite fazer uma “história” do futuro, não sustenta qualquer futurologia, nem qualquer das muitas variantes neomalthusianas que por aí circulam e que se destinam a justificar políticas do presente com pseudotendências a verificar no futuro. Nem a história, nem a sociologia, nem a economia permitem previsões de futurologia e o rastro de visões falhadas do futuro está um pouco por todo o lado. Mesmo as melhores utopias, quase sempre distopias, são tanto mais interessantes quanto são feitas a partir do presente e são, na sua melhor expressão, uma metáfora sobre o presente, como é o caso do 1984 de George Orwell.
Vem isto a propósito de uma variante do “não há alternativa” que aí circula assente num discurso neomalthusiano sobre o futuro, baseado em má economia e numa política que nada tem que ver com a democracia. O futuro, eles sabem como vai ser, ou se seguem as “regras” da economia e da governação estabelecidas pelas troikas nacionais e da “Europa”, ou todos os cataclismos se vão abater sobre quem se “desviar”. A vulgata económica, repetida à saciedade por quase todos os jornalistas económicos, um instrumento essencial de suporte à ideologia do “não há alternativa”, é simples e envenena rapidamente os activistas dos comentários mais ou menos anónimos e os participantes nos fora que rádios e televisões produzem a um ritmo diário. Uma única escola da economia tornou-se tão dominante que deixou de ser uma “escola” para se tornar “a economia”, mesmo que, por ironia, a maioria dos mais recentes prémios Nobel da Economia como Stiglitz, Krugman e Angus Deaton tenham posições frontalmente contrárias a esta interpretação da economia. Aliás, perante a indiferença geral dos partidários do “economês”, Stiglitz veio dizer a Lisboa que era preciso cobrar mais impostos para investir e que a desigualdade era uma opção política. A desigualdade, por exemplo, não tem qualquer papel no discurso do “economês” e da política que o sustenta. Não importa, não interessa e é inevitável.
Os governos, sejam conservadores, sejam socialistas, sejam o que forem, estão condenados a seguir a mesma política económica e social, e é essa política que define o “arco da governação”, o clube de partidos em que o voto dos eleitores serve para governar. O resto é um voto de segunda, tribunício e ineficaz, quase lúdico. Durante quatro anos em Portugal, só um punhado de pessoas que se contavam pelos dedos de uma mão é que resistiu a esta “inevitabilidade”, e mesmo os revoltados com a situação ficavam deprimidos com a falta de saídas previsíveis.
Pois tenho novidades para vos dar, surpresa!, de repente, saímos e saímos com uma genuína ruptura. Voltemos à história. O que hoje se passa em Portugal mostra como a história é sempre surpresa e é por isso que é inovadora, para o bem ou para o mal. A maioria dessas surpresas é má, algumas muito más. Existe uma maldição, que passa por ser chinesa, embora tenha sido escrita por um inglês, e que diz: “Que vivas em tempos interessantes.” Vivemos hoje em Portugal esses ”tempos interessantes”, com todos os riscos inerentes. A quantidade de coisas que mudou nas últimas semanas criou esse carácter poiético da história, criador e carismático, o que também significa que a sua novidade traz ao mesmo tempo esperança e insegurança. Insisto: nada garante que o que se está a passar é, como dizem as pessoas, “para melhor”, mas apenas que é diferente. E essa diferença exactamente por ser genuína não pode ser prevista, e as suas consequências e “normalização” também não. Mas uma coisa é certa: exactamente porque é uma genuína alteração, uma mudança, as pontes com o passado foram cortadas e o caminho para trás é impossível. Isso não significa que as forças do passado não estejam cá connosco, ainda assarapantadas com o que aconteceu, mas não menos vivas e perigosas. “Que vivas tempos interessantes.”
Pacheco Pereira in publico.pt