A incapacidade de enfrentar uma crise de valores

"Tem sido dito que o discurso sobre a crise dos valores se repete ciclicamente e que todas as gerações tendem a ver nas gerações seguintes um abaixamento dos padrões. Tem sido dito que o discurso sobre a insegurança e a criminalidade é um recurso fácil de políticos para angariar votos através da exploração dos sentimentos de insegurança. Tem sido dito que a sensação de deriva é apenas produto das profundas transformações económicas produzidas pela globalização da economia, e que a verdadeira fonte de insegurança é económica e social, não intelectual e moral.
Não posso entrar aqui numa discussão detalhada destes argumentos. Não concordo com eles, mas penso que devem ser tomados em conta, especialmente como freios e contrapesos contra o argumento que eu próprio vou aqui defender: o de que há uma crise de valores. Todos os argumentos, incluindo obviamente os meus, podem tornar-se enganadores, e as suas consequências práticas podem tornar-se indesejáveis, se forem exagerados. É bom, por isso, que todos os argumentos possam conviver com contra-argumentos, moderando-se e aperfeiçoando-se mutuamente.
O meu argumento, porém, é que existe uma crise de valores e de referências estáveis. Há uma percepção comum desta crise que se exprime na percepção do aumento do consumo de drogas, no aumento da criminalidade, sobretudo no aumento da delinquência juvenil, e também na percepção de que as famílias – quando elas existem – têm crescente dificuldade em enfrentar essas situações. Há também a percepção de que os órgãos de comunicação social, sobretudo a televisão, não ajudam a contrariar estes fenómenos, podendo inclusivamente estar a contribuir para o seu agravamento, designadamente através do abuso de cenas de violência, sobretudo violência cada vez mais cruel e gratuita, e através da atribuição ao impulso sexual de um papel obviamente exagerado na vida dos indivíduos e das sociedades. (...)
Mas eu gostaria de ir um pouco mais longe: a faceta mais preocupante desta crise de valores reside no facto de nós sermos cada vez mais incapazes de enfrentar o problema da crise de valores. Temos uma grande dificuldade em falar dos valores porque se instalou entre nós a ideia de que, numa democracia, não há valores impessoais ou suprapessoais: cada um escolhe os seus valores, um pouco como os seus gostos, e, obviamente, todos aprendemos que os gostos não se discutem. Viver numa democracia, dizem-nos, é aceitar todos os valores, reconhecer igual direito à expressão de todos os valores e, mais do que isso, reconhecer a todos eles igual consideração e respeito. Proferir juízos sobre os valores dos outros é já uma manifestação de autoritarismo que tem de ser condenada."
João Carlos Espada - www.cursoverao.pt