Jornalismo, ética e guerra

Qual deve ser a função do jornalista num quadro de mútua manipulação mediática? Como devem posicionar-se os que fabricam a informação num universo de desinformação? Como deve ser o relacionamento com as fontes em tempo de guerra? Um documentário que a RTP2 exibe hoje à noite no programa Sinais do Tempo fornece alguns dados para essa reflexão.
"Kosovo, jornalistas na guerra" é um documentário produzido este ano pelo canal Arte e a Riff International Production, que aborda um tema escaldante do ponto de vista mediático, e que assumiu particular actualidade no rescaldo da chamada "guerra do Kosovo": a função do repórter de guerra, a sua relação com as "fontes", as questões de ética profissional em tempo de conflito. O esquema adoptado é eficaz: têm a palavra jornalistas europeus, incluindo uma jornalista grega, um fotógrafo grego e uma jornalista turca, que permaneceram no Kosovo no início ou durante os 79 dias de ataques da NATO contra a Jugoslávia, na Primavera de 1999. Pronunciam-se ainda o director do centro de imprensa sérvio em Pristina, e correspondentes de agências ou de conhecidos jornais europeus em Bruxelas, onde os porta-vozes aliados forneciam a sua interpretação e justificação sobre o conflito. Dividido em seis partes, o documentário, com 88 minutos, beneficia de algum distanciamento temporal e permite reflexões mais apuradas sobre a última guerra do século XX que abalou a Europa.f+b f-bFornece também indicações sobre a forma como se deve "posicionar" um repórter numa situação onde a tensão, as emoções, as informações cruzadas, o medo, proliferam. "Guardar limites, é o que define o nosso trabalho profissional", diz, por exemplo, Paul Watson, o repórter do "Los Angeles Times", testemunha privilegiada, porque foi dos poucos que ficou na província do Sul da Sérvia durante toda a guerra. Foi expulso, como a grande maioria, mais decidiu regressar a Pristina, e acabou por ficar. Os seis capítulos em que se divide "Kosovo, jornalistas na guerra" exemplificam a implacável e mútua manipulação mediática que acompanhou o desenrolar de uma guerra declarada em nome de princípios humanitários. Apesar de condicionados, de apenas transmitirem uma "informação minimalista", estes repórteres tornaram-se incómodos. E decisivos. Neste aspecto, o documentário do Arte vai mais longe que o importante "Moral combat. NATO at war", produzido em Março passado pela BBC. Este questionava políticos e militares das duas partes em conflito, o segundo privilegia aqueles que fabricam a informação, num universo de desinformação. Interroga-se sobre qual deve ser, de facto, a função de um jornalista. A questão do "genocídio" no Kosovo, as acusações mútuas entre Belgrado e Bruxelas, as falsas notícias destinadas a "mobilizar" a opinião pública, as pressões sobre os refugiados, os alegados massacres e os massacres de facto. "Em tempo de guerra tudo é mentira enquanto não existirem provas irrefutáveis", reconhece o experiente Paul Watson, prémio Pulitzer. Agora, que balanço ou que análise fazer sobre o Kosovo? "A esfera política não pretende abrir o debate sobre o que é hoje o Kosovo", diz uma jornalista francesa. As "caixas de Pandora" abriram-se, mas "as pessoas não querem conhecer a verdade, porque isso não lhes interessa, porque é mais cómodo", acrescenta a repórter grega. A "lassidão ou falta de interesse das direcções", como se afirma no comentário, implicou que a maioria destes jornalistas tenha regressado ao Kosovo apenas uma vez após a guerra, em Março deste ano, quando se cumpriu o primeiro aniversário do início dos ataques da NATO. A jornalista turca, que reconhece ter vivido uma experiência que para sempre lhe moldará a vida, tomou mesmo uma decisão: frequenta o meio universitário, para aprender e aprofundar qual a relação entre a guerra e a ética.
Pedro Caldeira Rodrigues in publico.pt