
Que tem que fazer aqui a razão? Somos livres, como sabemos na consciente vivência do acto de ser consciente. Somos livres, como o sabemos da possibilidade de se ser e de se saber que se é, da infinita e infinitesimal diferença entre mim e mim, entre ser-se o que se é e o saber-se que se é esse ser, da infinitesimal diferença entre o ser que é o nosso e o ter querido ser esse ser.
Mas do estar-se sendo quem se é e do paralelo saber-se que se é e se quis ser esse ser, não é possível arrancarmo-nos nem para sermos outro ser diferente daquele que se quis ser, nem para entendermos como e porquê o que nos faz querer ser o que somos, nos fez de facto querer ser esse ser. Porque quando queremos isso e nos colocamos pois antes disso, já estamos sendo esse isso. Assim a intelecção da liberdade oscila perpetuamente entre a afirmação gratuita dessa liberdade e de um rigoroso determinismo. É-se livre quando se é quem se é; mas sermos quem somos é termos de ser esse que somos, já que não podemos ser quem não somos. Assim essa liberdade é ininteligível e sem fundo, pólo da nossa infinitude, significação-limite do sermo-nos.
Vergílio Ferreira, in 'Invocação ao Meu Corpo'