A fenomenologia Husserliana

Paralelamente ao movimento neokantiano, surge o método fenomenológico, ainda mais radicalmente idealista que o de Kant e talvez um dos primeiros processos de pensamento marcados pela vertigem deste século do movimento, que ganhou particular relevo na Alemanha, principalmente a partir da década de vinte deste século. Opondo-se ao empirismo positivista – para quem só o conhecimento dos fenómenos através da experimentação, constitui uma disciplina científica – bem como ao psicologismo e à filosofia dos valores, Husserl propõe que se vápara aquém e para além da esfera científica, sem contudo se perder no irracional. Neste sentido, considera o cientismo empírico-positivista como nominalista, dado que as leis lógicas são simples generalizações empíricas e indutivas comparáveis às leis das ciências da natureza. A pedra de toque fundamental da nova metodologia está no reconhecimento do mundo do espírito como dominado pela motivação e não pela causalidade. Porque se, na causalidade, pode explicar-se, já na motivação há apenas a susceptibilidade da compreensão, dado que a lógica, se diz algo sobre o ser, nada diz sobre o dever-ser. Assim, segundo Husserl, só podemos compreender se atribuirmos às coisas uma existência simultaneamente real e ideal, isto é, se lhe atribuirmos uma existência fenomenal. Se a ciência empírica procede à análise dos factos concretos e contingentes, o método fenomenológico propõe que se procure aquilo que é invariável e permanente, por intermédio da chamada intuição da essência (Wessenschau), que consiste na contemplação imediata das coisas. Husserl quer, deste modo, avançar para as próprias coisas (zu den sachen selbst), considerando que o fenómeno não é algo de desconhecido, não é qualquer realidade extra-mental, mas antes aquilo que aparece diante da consciência, contrariando os positivistas que apenas aceitam o ser sensível e individual, negando nestes a hipótese de uma essência. A essência não é assim um conceito genérico obtido pela indução (v. g. o que é comum a uma pluralidade de factos), mas algo que é anterior à experiência e imanente aos objectos. Em primeiro lugar, devemos pô r entre parêntesis tudo o que nos é dado do exterior, para concentrarmos a nossa atenção no próprio acto do pensamento – é a chamada redução fenomenológica, ou epoche, que põe de lado tudo o que é acessório, para poder atingir-se a essência pura. Deste modo se suspende o juízo sobre os objectos empíricos ou existenciais das coisas, sobre tudo o que não aparece como imediatamente evidente diante da nossa consciência. Segue-se a redução eidética, uma forma de conhecimento a priori que apreende imediatamente a essência das coisas, na sua pureza lógica, consistindo em passarmos de uma intuição empírica a uma intuição da essência, eliminando a individualidade e a existência. E isto porque os a priori da consciência, as formas, estão repletas de um conteúdo e de uma significação, apreensíveis mediante a intuição. Aliás, essa auto-reflexão transcendental é equiparada pelo próprio Husserl à teoria no sentido tradicional, conforme o entendimento de Platão e Aristóteles. Deste modo, como observa Cabral de Moncada, o fenómeno passa a ser tudo o que é imediatamente dado à consciência e intuitivamente apreendido ou captado mediante uma forma especial de intuição não sensível, não havendo distinção entre o fenómeno e o númeno, entre aquilo que aparece e a coisa em si. Neste sentido, conforme o próprio Husserl, há que estudar cuidadosamente os actos sociais nas suas diversas formas e, partindo disso, tornar compreensível de um ponto de vista trancendental a essência de toda a sociedade. Importa procurar o invariável na relação constante entre variáveis, considerando-se que a essência ou eidos é aquilo que, no meio da variabilidade, se apresenta como invariável. As essências não se inventam nem se deduzem: vê em-se e contemplam-se, são dados, coisas que podem descrever-se através da fenomenologia, entendida como simples ciência descritiva dessas mesmas essências. Porque anteriores à experiência, são imanentes aos objectos, porque cada objecto possui uma ideia, um valor ou um conceito que a nossa consciência apreende. Por exemplo, para a fenomenologia, o dever-ser constitui, no pensamento do direito, um seu objecto intencional, sendo assim que ele se nos apresenta imediatamente à consciência. A missão das ciências eidéticas é o intus legere, ao contrário das ciências empíricas, que têm de conhecer, de estabelecer relações causais entre os fenómenos, porque as coisas são o dado imediato da intuição, por oposição àquilo que, nos neokantianos, era uma simples cogitação intelectual. Qualquer consciência passa a ser abertura para as coisas, levando a que o homem não seja apenas um ser que está no mundo, mas um ser para o mundo. Que se não há objecto sem sujeito, também não pode deixar de existir sujeito sem objecto. Isto é, que não há sujeitos trabalhando solitariamente na subjectividade. Aliás, este apelo para o regresso às próprias coisas marca o posterior impressionismo simbolista, que declara que pode partir-se do aprofundamento de um caso particular procurando descobrir nele a essência. Assim, todos os pensamentos e todos os conceitos contêm em si outros pensamentos, entendidos como objectos para que os primeiros intendem. Logo, analisar um pensamento e um conceito não é apenas descrevê -los, havendo que descobrir outros pensamentos neles contidos, outros objectos intencionais para que eles tendem, num processo de anatomia do pensado, pelo qual se sai fora do mero cogito. Logo, no direito como pensamento, há um objecto intencional, o chamado dever-ser. Porque a primeira coisa que se nos oferece, ao pensarmos no direito, é a ideia de alguma coisa que deve ser. É assim que o direito como essência significativa se nos apresenta imediatamente à consciência, aquele intuitivo, aquela verdade apodíctica que não precisa de demonstração.

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