A Natureza do Movimento Pan-Islâmico Radical

Além da influência de uma interpretação extremista da religião, o movimento pan--islâmico radical define-se pelo seu carácter internacionalista e pela sua natureza revolucionária.
De acordo com uma análise recente elaborada por Daniel Pipes as sociedades muçulmanas criaram três respostas políticas à modernidade. Aqui, interessa considerar duas delas. A primeira, o secularismo, considera que os países islâmicos só se podem desenvolver se adoptarem os modelos políticos ocidentais, e afastarem o Islão da esfera pública. Como já vimos, esta solução em larga medida fracassou. Uma segunda ideologia política, o “Islamismo”, constitui uma resposta simultaneamente à modernização e ao fracasso dos modelos seculares. Segundo Pipes, o Islamismo apoia-se em três ideias centrais: a subordinação à lei islâmica, a rejeição de influências ocidentais, e a transformação da fé religiosa numa ideologia política. Este último ponto é fundamental. Como nota Pipes, “o termo “Islamismo” é útil no sentido em que indica que este fenómeno político é um “ismo” comparável a outras ideologias do século XX”. Como afirmou um membro da Irmandade Islâmica do Egipto, “nós não somos nem socialistas, nem capitalistas, mas muçulmanos”. Como observa Pipes, de um modo perspicaz, um muçulmano em tempos mais antigos teria dito, “nós não somos nem judeus, nem cristãos, mas muçulmanos”. Isto mostra indiscutivelmente que o islamismo, no início do século XXI, é uma ideologia política, a qual ocupa um lugar vital nos movimentos islâmicos radicais.
Esta análise demonstra, portanto, a importância fundamental da religião para os movimentos islâmicos radicais. Isto leva-nos a considerar a tese do “choque das civilizações”. Por outras palavras, é fundamental enfrentar a questão mais difícil de todas: a relação entre o movimento pan-islâmico radical e a religião muçulmana. Há duas razões centrais que nos obrigam a não confundir os movimentos islâmicos radicais com a religião muçulmana. Antes de mais, é dificil aceitar uma interpretação autêntica de uma religião, ainda mais no caso do Islão, na qual a estrutura de autoridade é descentralizada. As percepções da religião vão-se alterando de acordo com as transformações históricas sofridas pelas sociedades. Em segundo lugar, o Islão é uma referência fundamental para a identidade e a organização de muitos que têm uma visão moderada e ética da política. Por exemplo, alguns movimentos políticos estão empenhados em construir uma “alternativa islâmica humanista”, a qual, partindo de uma perspectiva religiosa, oferece uma leitura de um Islão tolerante, democrático e pacífico. Ou seja, mesmo admitindo que se pode tratar o conjunto das sociedades islâmicas como uma “civilização”, existem conflitos e divergências entre os seus movimentos políticos. Não é possível definir uma “civilização” em termos unitários com um único interesse político. Na perspectiva das relações internacionais, este ponto é fundamental. Se é verdade que com os movimentos mais radicais há um “choque”, com outras forças políticas poderá ser possível estabelecer-se formas de cooperação e diálogo, indispensáveis à manutenção da ordem política internacional. Assim, pode-se afirmar, por um lado, que o problema não é com a religião islâmica enquanto tal, mas sim com a utilização da religião para criar movimentos políticos radicais. No entanto, como veremos agora, a religião, mesmo que seja através de um processo de instrumentalização, desempenha um papel central na definição da estratégia e dos objectivos políticos dos movimentos islâmicos radicias.
O termo pan-islamismo radical exprime a estratégia e os objectivos políticos dos movimentos islâmicos. Como foi observado no início do texto, a unidade da comunidade islâmica é um dos objectivos centrais dos movimentos radicais islâmicos. Este objectivo político apoia-se desde logo numa unidade ideológica. A linguagem política, as referências ideológicas e o ressentimento sentido contra as potências ocidentais e liberais é comum a sectores políticos e sociais de todas as sociedades islâmicas. Estes sentimentos, partilhados por muitos, são reforçados pelo facto de muitos estudantes de todo o mundo islâmico estudarem nas escolas corânicas do Médio Oriente e do Paquistão. O islamismo transformou-se assim numa ideologia política de mobilização nas sociedades islâmicas. Além do mais, a estratégia política passa por ligações transnacionais entre os movimentos islâmicos radicais. Esta estrutura organizativa transnacional liga vários países diferentes, desde a Argélia e o Egipto, no mundo árabe, até à Indonésia e à Filipinas no Sudeste asiático, passando pelo Paquistão, Afeganistão e Uzbequistão na Ásia Central e pelo Sudão e a Somália na África Oriental. De um modo verdadeiramente universal, esta estrutura internacional islâmica radical está ainda presente e activa nos países europeus e nos Estados Unidos e Canadá, onde existem células terroristas. A natureza transnacional das organizações islâmicas dá uma enorme mobilidade às suas forças políticas e paramilitares.
Os mesmos movimentos, e nalguns casos os mesmos indíviduos, estiveram na guerra contra a invasão soviética no Afeganistão na década de 80, e depois, durante a década de 90, nas guerras civis da Argélia e do Afeganistão, no conflito do Caxemira indiano e na guerra da Tchétchénia. Pelo meio, podem frequentar cursos de aviação nos Estados Unidos e estudar em universidades europeias, enquanto preparam ataques terroristas.
O recurso ao terrorismo internacional como instrumento de combate político mostra a internacionalização das actividades dos movimentos radicais. Sensivelmente a partir de meados da década de 90, as várias organizações terroristas islâmicas começaram a atingir alvos estrangeiros. A luta deixa de ser apenas contra os seus governos, e em vez de atacarem apenas os dirigentes políticos locais, passaram a fazer atentados contra alvos estrangeiros, diplomatas e turistas. Simultaneamente, iniciaram acções terroristas nos países ocidentais, culminando com os ataques de 11 de Setembro em Nova Iorque e Washington. Neste caso, o objectivo é atacar e enfraquecer através do terror os Estados ocidentais. De certo modo, o aumento da capacidade militar dos grupos terroristas aponta para uma crise do monopólio do uso da violência legítima por parte dos Estados soberanos.
O resultado da fragmentação da capacidade de usar a força militar é obviamente o aumento das vulnerabilidades dos Estados.
A unidade da comunidade islâmica exige acima de tudo que se façam revoluções nos países islâmicos. A principal finalidade dos movimentos islâmicos radicais é precisamente conquistar o poder nos países muçulmanos, o que reforça a natureza pan-islâmica destes movimentos. Não deixa de ser revelador que as últimas revoluções políticas ocorridas em países islâmicos puseram movimentos radicais no poder. Em 1979, no Irão e em 1996, no Afeganistão. O modo como os Taliban subiram ao poder no Afeganistão é um bom exemplo do funcionamento do pan-islamismo. A sua formação ideológica deu-se nas escolas corânicas do Paquistão, as “madrassas”. Em 1994, os estudantes de teologia formaram um movimento político, iniciando ao mesmo tempo a sua preparação militar, aperfeiçoada com a participação na guerra entre as forças islâmicas e o exército indiano na Caxemira. No mesmo ano, com a ajuda do Paquistão, iniciaram a conquista do poder no Afeganistão. A revolução culminou com a captura de Cabul em 1996, estabelecendo-se então um “Emirado Islâmico”, liderado pelo Mullah Mohammed Omar. Desde então, grande parte da força militar do Emirado Islâmico do Afeganistão resulta da presença de movimentos militares islâmicos de carácter internacionalista, compostos por árabes, paquistaneses, tchetchenos, uzbeques e mesmo europeus, e liderados pela Al-Qaeda.
Apesar do fim iminente do regime Taliban no Afeganistão, a possibilidade de acontecerem revoluções noutros países islâmicos mantém-se. Na Argélia e no Egipto, os movimentos islâmicos radicais continuam a ser politicamente fortes, e a receberem um enorme apoio popular. É a ajuda política, económica e militar dos países ocidentais que tem evitado a queda dos actuais regimes políticos destes dois países. É legítimo perguntar até quando é que se poderá manter a situação de satelização de países regionais importantes, e o que acontecerá quando esta situação terminar. O mesmo conflito entre uma população onde existem elementos fortemente anti-americanos e um governo aliado de Washington afecta a Arábia Saudita. Existe, em particular, uma grande oposição à manutenção de tropas americanas no seu país. Para garantir a sua segurança nacional, o regime saudita necessitou de se aliar aos Estados Unidos. Todavia, esta aliança criou grandes reacções internas, e o resultado poderá ser uma acentuada perda de legitimidade do regime no interior do país. De um modo significativo, entre a população, o apoio aos grupos islâmicos radicais tem vindo a aumentar. O resultado poderá ser a tomada do poder por forças islâmicas mais radicais. Aliás, não deixa de ser preocupante o facto de grande parte dos soldados do movimento Al-Qaeda serem naturais da Arábia Saudita. De igual modo, mais de metade dos terroristas dos ataques de 11 de Setembro eram cidadãos sauditas. Por fim, também no Paquistão existem sinais preocupantes. Desde o final da década de 90, tem-se assistido a uma crescente “talibanisação” do Paquistão. As 1200 “madrassas” que existem no país têm cada vez mais influência na sociedade e na vida política paquistanesa. Estas verdadeiras fábricas de militantes islâmicos, onde, como vimos, o movimento Taliban foi criado, espalham o ódio ao Ocidente, e particularmente aos Estados Unidos, e a obrigação de combater o infiel. Foi nestas escolas que se fizeram as maiores celebrações após os ataques a Nova Iorque e a Washington, e grande parte delas, após a intervenção militar no Afeganistão, declararam a guerra santa contra os Estados Unidos e os seus aliados, entre os quais se inclui o próprio governo paquistanês. Ou seja, no início do século XXI, o pan-islamismo radical é um movimento verdadeiramente internacionalista e revolucionário, que ameaça a segurança dos países ocidentais e que pretende fazer revoluções políticas com o objectivo de unificar o mundo islâmico.
João Marques de Almeida in comum.rcaap.pt