A um deus desconhecido

Há momentos na nossa vida em que tudo muda. Na minha isso aconteceu quando conheci o João. Estávamos em Coimbra no final dos anos 80 e a minha juventude acabava de se tornar universitária. Cheguei para estudar Engenharia Mecânica na Faculdade de Ciências e Tecnologia na senda de tornar real uma profissão que as desigualdades do Estado Novo tinham roubado ao meu pai; e cumprir uma vaidade da minha mãe: ter um filho a estudar na Universidade de Coimbra; cidade do fado, da saudade e dos doutores.
Muitos anos depois, frente a uma página de papel, cabe-me agora recordar aquela tarde remota (onde é que eu já li isto) quando, num dia de outono como este, o João José Cardoso me levou a conhecer a rádio. Foi nesse dia, exatamente há um quarto de século, que a minha vida se transformou para sempre.
No estúdio da rádio, na cabina de som, encontrava sem esperar um novo "sentido para a vida". O promitente engenheiro dava folga às sebentas da mecânica, da física e da álgebra e abraçava sem limite as ondas sonoras da rádio. Lá dentro havia livros de poesia, romances de aventuras e lições de camaradagem. Foi na colmeia louca da Rádio Universidade de Coimbra que conheci o João. E foi por causa dele que não dediquei a minha vida a estudar foguetes, caixas de velocidade ou permutadores de calor. O João foi o meu "pai" radiofónico e muito depressa se haveria de tornar um dos meus companheiros de vida.
Coimbra era, naquele tempo, um lugar mágico. Talvez todas as cidades universitárias fossem belas (porque então éramos jovens e tudo era mais belo) mas a lusa Atenas tinha muitas singularidades que contribuíam para que fosse verdadeiramente especial. Coimbra era simultaneamente grande e pequena, conservadora e radical, católica e anarca, tradicional e futurista, académica e futrica. Coimbra resistiu à globalização - no sentido da normalização - mais que qualquer outra cidade em Portugal (ainda resiste!) porque conseguia num lugar pequenino reunir o mundo inteiro. Só num lugar assim podem existir vidas como esta que hoje, modestamente, quero celebrar.
O João era inquieto como as músicas do José Mário Branco. Tranquilo como os diálogos dolentes nos fins de tarde no Café Santa Cruz, ao lado da Câmara Municipal, a sua segunda casa. Agitado a defender os ideais impossíveis do seu Bloco de Esquerda. Nervoso na composição miúda dos argumentos com que enchia doces e intermináveis conversas sem objetivo aparente. Sempre sereno na forma como se entregava aos prazeres da amizade.
Vendia aulas e colecionava sonhos. Estudava os assuntos de que gostava com a minúcia dos historiadores à procura dos detalhes que ninguém mais via. Encenava os "outros tempos" como se fosse mesmo possível viver neles. E eu acreditava.
Foi este o homem que mudou a minha vida. Que estragou um engenheiro infeliz e inventou um poeta otimista. Que me ensinou a utilizar a alegria na fórmula resolvente. Que me fez compreender que o binómio de Newton é ainda mais belo se não precisares de o utilizar todos os dias. O trabalho separou-nos. Mas mantivemos sempre a amizade.
Falei com ele, no dia das eleições, fez ontem oito dias. Sabia que era difícil a luta que dava à doença mas não antecipava uma derrota tão repentina. E a página do Facebook que o mostrava jovem dava-me esperança. Mas era vã. Não soube ouvir e hoje estou cheio de lágrimas porque o João partiu.
Ele não acreditava em Deus e por isso sei que nunca mais o vou encontrar fora destas memórias. Perdoo-me pouco por não ter encontrado tempo na voragem do trabalho para lhe ter dito que a maior parte das minhas memórias de juventude eram dele. Que gostava muito de ele ter sido o "meu agente transformador".
Na primeira vez que fui a sua casa emprestou-me um livro: "Como ser anjo", de Vassilis Vassilikos, uma edição muito antiga da Porto Editora. Pediu-mo várias vezes de volta, durante anos, eu resisti sempre, até que encontrou outro exemplar igual. Nesse dia, já a Grécia a braços com a crise, telefonou-me para mo oferecer. Rimos. A luta da Grécia por um Mundo novo foi a sua última causa e último texto que publicou no blogue "aventar" de que foi fundador.
Quando os amigos morrem ficamos mais perto da morte. Mas também ficamos mais perto do céu.