Carnaval e "Festa dos Loucos"

É discutido o étimo de Carnaval. Para alguns, seria carrum navale (carro naval). Nas Saturnais, em Roma, um carro em forma de navio abria caminho por entre a multidão, que usava máscaras e se divertia. Já antes, na Grécia, se realizavam as célebres procissões dionisíacas, nas quais a imagem de Dioniso era transportada em navios com rodas, simbolizando que o deus tinha chegado a Atenas pelo mar.
O étimo mais aceite é carne vale: "Viva a carne!", enquanto "adeus à carne", na medida em que, antes da entrada no período quaresmal de 40 dias com jejuns, abstinência e sacrifícios, se festeja exaltadamente. Daí que o Carnaval esteja mais ligado à tradição de países católicos e que continuem expressões como "Domingo Gordo" e "Mardi Gras" (Terça-Feira Gorda).
Quando se procura as raízes históricas do Carnaval, há quem vá até às festas em honra de Ísis e Osíris, no Egipto. Entre os gregos e os romanos, havia grandes festejos, com cantos, sexo e vinho, em honra de Dioniso e Saturno, para celebrar a entrada da Primavera. Os germanos celebravam o solstício do Inverno, homenageando os deuses e expulsando os demónios maus.
Foi tardiamente que os cristãos aceitaram os festejos carnavalescos às portas dos rigores quaresmais. Apesar das tentativas da Igreja oficial para travá-los, eles continuaram e impuseram-se.
O homem não é só sapiens. Ele é sapiens e demens: sapiens sapiens e demens demens (duplamente sapiente e duplamente demente). Por mais que a sociedade tente "normalizar" comportamentos, haverá sempre explosões de alegria, excessos, desmesuras e loucuras.
Trata-se de uma espécie de necessidade catártica, numa terapia colectiva, como se tudo se invertesse ou voltasse ao caos originário, para ser possível regressar à ordem.
Há um texto da Faculdade de Teologia de Paris, que, em 1444, assim quer justificar a Festa dos Loucos: "Os nossos eminentes antepassados permitiram esta festa. Porque haveria ela de ser-nos interdita? Os tonéis do vinho rebentariam, se de vez em quando se não abrisse o batoque para arejá-los. Ora, nós somos velhos tonéis mal ajustados que o vinho da sabedoria rebentaria, se o deixássemos ferver numa devoção contínua ao serviço divino. É por isso que dedicamos alguns dias aos jogos e à palhaçada, a fim de voltarmos em seguida com mais alegria e fervor ao estudo e aos exercícios da religião."
Precisamente a Festa dos Loucos leva-nos a reflectir sobre a relação entre o riso e o sagrado.
Nos Evangelhos, de Jesus diz-se que ele se admirava, comentando Tomás de Aquino que essa é a prova da sua humanidade, pois é próprio do homem espantar-se (não é o espanto o princípio da Filosofia?), e também se afirma que chorou, nunca se referindo, porém, nem o sorriso nem o riso.
Por isso, no quadro da desconfiança ascética face ao riso, que chegou a ser considerado demoníaco, generalizou-se a ideia de que nunca se riu. Mas é evidente que Jesus sorriu e riu, pois sorrir e rir são características distintivas do homem. Ai do homem incapaz de rir-se de si mesmo!
Por outro lado, só nas ditaduras é que não é permitido fazer humor nem rir dos poderes instituídos.
Há testemunhos das Festas dos Loucos desde finais do século XII e eram promovidas pelo baixo clero. Elegia-se, entre os subdiáconos, um senhor da festa, designado por "Bispo". Na transmissão simbólica do "báculo", entoavam -se os versículos do Magnificat: "Depôs os poderosos dos seus tronos e exaltou os humildes", apontando assim para a utopia da igualdade e a inversão da ordem vigente na realização do Reino de Deus.
Chegava-se a colocar o clérigo feito "Bispo" sobre um burro, avançando para o altar com o rosto voltado para a cauda. Durante a liturgia, em momentos fundamentais, o celebrante e os assistentes zurravam.
Neste descalabro burlesco, seria possível, ver, no limite, a urgência de não confundir o sagrado em si com as mais variadas formas idolátricas que os crentes lhe emprestam. Pode perguntar-se com Paulo A. Borges se "nesta cáustica e caótica violação e suspensão de todos os respeitos", não se tratará de estender ao sagrado e ao divino "aquele libertador iconoclasmo do espírito que se recusa a aceitar, como dignos de veneração e culto", "os mais dissimulados ídolos que acima de tudo importa reconhecer e desconstruir".

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