Ética e acção educativa

Se educar, para além de tudo, consiste em oferecer e transmitir um modo de viver e de entender a vida, a escola deve ser uma comunidade em que se vivem os valores que são transmitidos como formas de viver e de entender a vida às gerações mais novas; educar é acreditar que existem coisas (símbolos, técnicas, factos, memórias e valores) que podem ser conhecidas e que merecem sê-lo; mas educar é um acto de coragem que, segundo Kant, está reservado aos seres humanos, pois a educabilidade é, indubitavelmente, uma dimensão que caracteriza o homem e implica valores; mas todo o acto de valoração traz consigo um processo de hierarquização e de organização holística das diversas categorias de valores; esta estruturação valoral define a imagem distintiva da personalidade individual; os próprios estádios do processo valorativo correspondem aos aspectos psicológicos da formação da personalidade. É neste sentido que D´Hainaut refere que os valores estão na origem das políticas e das práticas educativas; são eles que determinam e orientam as finalidades da educação. Na verdade, a educação exige uma viagem com o outro, em direcção à alteridade. Os valores obrigam a configurar a educação como um permanente projecto em superação. As instituições educativas (que não são meras instituições de instrução) exercem oficialmente uma função de iniciação aos valores que partilham, cada uma à sua maneira, com as famílias e com as demais comunidades de pensamento em que se inserem. Nesta perspectiva, as prestações que devem oferecer aos seus utilizadores ultrapassam o fim puramente instrumental (distribuição de conhecimentos) ao qual houve a tendência de reduzi-las no decurso do último meio século. Situada no movimento do mundo, a escola encontra-se, doravante, directamente confrontada com preocupações éticas que atravessam as sociedades e os indivíduos. Tornou-se-lhe impossível contorná-las sem renunciar a uma dimensão essencial da sua missão de formação dos espíritos; por isso, a problemática maior da escola não se situa, actualmente, na esfera do funcional, mas sim na esfera da ordem ética. A sensibilização para o bem e para o mal, a tomada de consciência de uma certa universalidade dos valores, a iniciação à pertença de cada um à Humanidade na sua totalidade, são algumas das dimensões éticas perante as quais a instituição educativa deve assumir frontalmente uma parte de responsabilidade. O papel das diversas disciplinas curriculares, enquanto tomadas de posição interculturais, inclui, naturalmente, o tratamento de questões que ultrapassam os respectivos programas. Estes aspectos são primordiais. E é legítimo afirmar que a extrema diversidade das populações escolares, característica da escola contemporânea, torna ainda mais urgente e mais difícil o exercício desta responsabilidade, sendo claro para todos, doravante, que uma “cultura ética” faz parte das competências que pertencem às instituições educativas. Compete, na verdade, à escola de hoje colocar em evidência a permanência das preocupações éticas. É uma situação resultante da marcha do mundo, que nos obriga, simultaneamente, a conservar referências (construindo uma tradição) e, quando necessário, a modificá-las, rasgando o progresso. A uniformidade e a uniformização são contrárias à dinâmica do ensino e da educação; um e outra exigem a prática de uma rectificação permanente. A autonomia do aluno e a sua construção desenvolvem o horizonte ético de todo o ensino e é isso que deve guiar o docente nas suas diversas intervenções, uma vez que educar na liberdade e para a liberdade é a tarefa decisiva de uma educação integral e personalizada, uma vez que a liberdade é um dado fundamental da existência humana, que não pode remeter-se a nenhum outro (porque é livre, o homem é responsável pela clarificação das sua crenças fundamentais e pela análise e organização das premissas das suas práticas em todos os níveis do agir). As instituições educativas são, em cada um dos países, a garantia de uma coesão social que hoje se torna tanto mais essencial quanto é necessário construí-la a partir de uma diversidade cada vez maior. Têm, portanto, necessidade de eixos mais amplos em torno dos quais possam situar as suas contribuições e fixar os seus princípios.
Alimentam-se, desde então, em fontes simultaneamente clássicas e incarnadas na época contemporânea. A orientação para a alteridade, em tal contexto, constitui uma prioridade, bem simbolizada no desenvolvimento de opções pedagógicas interculturais que, quer se queira, quer não, se impõem cada vez mais tanto aos especialistas, como no terreno concreto da própria escola. É, por consequência, no interior desta complexidade que as interrogações éticas têm hoje lugar; e este espaço torna-se decisivo na medida em que constitui uma oportunidade quase única que permite construir uma autêntica autonomia do aluno, isto é, uma abertura e um acolhimento ao outro enquanto outro, simultaneamente diferente de si e semelhante a si.
Cassiano Reimão in digitalis-dsp.uc.pt