Não queremos o mundo de Orwell nem o de Aldous Huxley! - Michael Burry

“Estamos de volta ao mesmo: tentar estimular a economia através de dinheiro fácil. Não resultou, mas é a única ferramenta da Reserva Federal. Entretanto, as suas políticas alargaram o fosso para os mais ricos, algo que alimenta o extremismo político. Parece que o mundo inteiro aposta em taxas de juro negativas e isso é tóxico. As taxas de juro são usadas como classificação do risco, pelo que, no actual ambiente económico, o mecanismo de atribuição desse preço está desequilibrado. Isso não é saudável para a economia. Estamos a colocar demasiado 'stress' sobre o sistema e isso vai, por certo, causar danos.” Quem manifestou esta convicção à revista “New York” foi Michael Burry, o génio que anteviu a crise económica de 2008 e acabou a ganhar milhões com as suas decisões à frente do fundo Scion Capital, tornando-se figura central no filme “A Queda de Wall Street”, inspirado na obra de Michael Lewis e nomeado para os Óscares do próximo dia 28 de Fevereiro.
Dívida é aquilo que deixa o gestor do fundo Scion Management mais nervoso a propósito do futuro. “A ideia de que o crescimento vai resolver as dívidas é demasiado geradora de dependência para os políticos, mas os cidadãos acabam por pagar o preço”, respondeu, através de e-mail, a perguntas da referida publicação nova-iorquina.
Sobre resultados práticos da crise, Burry revelou-se decepcionado. “Infelizmente, não vejo muitos”, sublinhou. “Tinha uma enorme esperança de que se entrasse numa era de grande responsabilidade pessoal – ao contrário, reforçou-se a atribuição de culpa aos outros e isso, a longo prazo, é trágico. E, de forma incrível, a crise tornou os grandes bancos ainda maiores! Além disso, a Reserva Federal, um órgão não eleito, tornou-se ainda mais poderoso e, por isso, mais relevante. A maior reforma de legislação, chamada Dodd-Frank, recebeu os nomes de tipos que foram comprados pelos mais variados interesses e pelo menos um deles deveria arcar com parte substancial da crise. As mudanças que se fizeram até expandiram o fosso para os mais ricos, reforçando a sua riqueza à custa dos desfavorecidos.
Mesmo assim, pelo menos na perspectiva dos media, o gestor encontra alterações. “Parece que a América está refém de Wall Street, das grandes empresas do sector privado e dos mais ricos. O capitalismo está a ser julgado. Mas vejo as coisas de forma algo diferente. Os factores que contribuíram para a crise foram vários e não começaram nos bancos, mas nas decisões de cada indivíduo que cedeu à finança para ter uma vida melhor. A crise foi tão profunda que, sete anos depois, o mundo ainda está a tentar recuperar-se. Contudo, foram poucos os que se responsabilizaram pelo sucedido e a razão é muito simples: culparam os outros e, desse modo, criou-se uma narrativa que só prejudica. Seja a culpa de 1% dos mais ricos, dos 'hedge funds' ou de Wall Street, cada americano deve avaliar bem o que se passou. Devíamos ensinar os nossos filhos a serem melhores cidadãos através da responsabilidade pessoal e não com o exemplo da culpa.”
Questionado a propósito da eventual surpresa por ninguém ter sido preso, Michael Burry replicou: “Muita gente que tinha empréstimos perdeu as suas casas e as próprias vidas, mas os executivos e aqueles que fizeram os empréstimos simplesmente ficaram mais ricos. Sinto-me chocado com isto, mas esta é a natureza de coisas deste género. Quando se registou a crise das dot.com quem estava por trás da máquina também não foi punido. São os mais pequenos investidores e aqueles que têm empréstimos quem paga sempre. E, também por isto, é preciso que estejam mais prevenidos e desconfiados se alguém muito bem vestido aparecer a entregar dinheiro fácil. Será sempre um factor de sedução, mas nada mais é do que a venda da alma ao Diabo.
Recordando os tempos em que antecipou a crise, Burry contou: “Senti-me como se estivesse a ver um avião despenhar-se e até sonhei com isso várias vezes. Sabia o que estava a suceder, mas nem eu, nem ninguém, poderia travar os acontecimentos. No último dia de 2007 fui incapaz de voltar para casa, não conseguia acalmar-me. Escrevi um e-mail à minha mulher e expliquei: 'Não posso voltar para casa, o que está a acontecer é demasiado perturbador e não quero estar com os meus filhos neste estado.'
Afastando-se do mundo dos investimentos após ganhos de mil milhões de dólares com o fundo que geria, Michael Burry voltou em 2013, outra vez como gestor de um fundo, agora denominado Scion Management, mas agora apostado noutro sector. “Há 15 anos comecei a olhar para investimentos na água, um bem que não pode ser visto como garantido, pois é político e litigioso. Ficou claro para mim que a alimentação é a chave para investir em água, ou seja, tirar partido desse bem nas áreas em que é mais abundante e transportá-la para áreas onde menos existe. Trata-se do melhor método de redistribuição sustentável da água e até gera lucros.”
Apesar de tudo, o gestor ainda manifestou alguma confiança no futuro, embora falasse também sobre preocupações. “A inovação é um sector que, em especial nos Estados Unidos, me agrada. Ver progressos e tanta gente generosa e empenhada na área da saúde é, a longo prazo, muito positivo para a Humanidade. Fico menos impressionado com os valores que rodeiam a tecnologia no sector do entretenimento. Não queremos o mundo que Orwell previu, mas também não desejamos o de Aldous Huxley”, concluiu.
in economico.sapo.pt