Os estranhos que já conhecemos - Marco Gil

Tropeçamos uns nos outros e não nos apercebemos disso. Somos sugados pelo tempo, pelas preocupações, pelo dia-a-dia, pelas obrigações. A consulta é às 10h e temos que estar no consultório pelo menos dez minutos antes, a reunião com o chefe urge pela pontualidade e um segundo de atraso é um corte no ordenado. Vivemos contra o tempo e quando estamos a favor dele não o sabemos agarrar para o poder multiplicar.
São assim as vidas feitas de rostos destapados que se cruzam e não se apercebem disso, que não sentem o sopro do frio, o encosto, o encosto mais forte, os passos acelerados. A Rita e o João partilham o mesma estação de metro há dez anos seguidos, interromperam a presença habitual apenas por doença e apesar de se cruzarem diariamente nunca deram conta um do outro. Ela já deixou cair a carteira mas ele não se recorda de a ter apanhado para lha entregar. O suspiro dos dias maus da Rita é invisível ao João.
A paragem de autocarro nos subúrbios de Londres é porto de abrigo durante 15 minutos para Sarah e Richard há mais ou menos três anos. Não sabem qual é a cor de cabelo um do outro, nem a marca dos ténis e nos dias em que a Sarah levava o rosto coberto das lágrimas que eram marcas de dor de uma relação antiga, Richard tinha os "phones" bem altos e a conversa que ia ter dali a nada com o chefe ocupava-lhe a memória e incrivelmente a visão.
O problema é que não estamos onde estamos. Os pensamentos roubam-nos a presença, e as preocupações desviam-nos dos cinco sentidos. Vivemos alheados da realidade porque estamos a viver outra que não que deveríamos viver. Presenciamos o passado ou o futuro de perto, porque nem nos apercebemos que temos o presente diante dos olhos. Não vivemos o instante e nem é por mal, é porque não temos a percepção de que ele está a decorrer. Passamos ao lado dos momentos porque estamos a viver outros, enganamos a realidade que a vida nos oferece para viver o antes ou o depois de alguma coisa que nos inquieta.
Por vezes temos a música alta, os "phones" substituem as vozes que nos deviam ser familiares, esquecemo-nos que estamos acompanhados e o livro vai no capítulo mais interessante. Tenho em mim que por cada beijo que lemos no melhor trecho do livro existe um casal que se beija numa estação de metro e damos conta se somente tirarmos os olhos do papel.
Prefiro o barulho da agitação matinal à última música dos One Direction. Sou apologista das vidas que se cruzam, dos enlaces que se fazem e por vezes para sempre. E são eles fruto de um acaso que virou rotina e não pode ser substituído por um êxito musical ou apenas por distracção. O mundo é para ser vivido em partilha quando não estamos sós e as vidas não podem descruzar-se por negligência própria.
Em Londres, à porta de uma estação de metro nos arredores de Chelsea, conheci o Louis, músico nas horas vagas e empregado de escritório por obrigação. Há 15 anos que ali apanha o metro e cruzava-se diariamente com David, um jornalista comum. Nunca se tinham "visto" e, em apenas dois dias seguidos, eu fotografei-os enquanto passavam um pelo outro. Ficaram incrédulos e acredito que ainda hoje não conseguem explicar como nunca se aperceberam um do outro. Hoje já se cumprimentam diariamente, primeiro com um aceno e agora com um passou-bem.
A Sabrine, o Morgan e o Jean pisam o mesmo chão numa estação de metro no centro de Paris há mais de três anos, os horários são os mesmos, mas a pressa também. Nunca se viram, sei que não sabem da existência uns dos outros mas cruzam-se todos os dias na vida e no caminho, para o trabalho e para casa. Fotografei-os e abordei-os isoladamente e nenhum conhece qualquer dos outros: "Nem de vista". O perfume dos dois últimos é o mesmo, pude percebê-lo porque é comum a mim. Eles não sabem disso.
O Robert trabalha no centro de Amesterdão, sai todos os dias às 17h e nunca foi para casa sem beber uma cerveja no pub ao lado do local onde trabalha. Lucas um italiano a viver em Amesterdão tem o mesmo ritual que Robert e, para além de nunca terem bebido uma cerveja juntos, nunca se tinham visto, no entanto vêem-se todos os dias.
A culpa não é nossa mas do mundo paralelo em que vivemos, da distância que criamos para a realidade que nos é dada por condição. Dos "phones", dos "smartphones", da internet acessível por todo o lado, do pensamento que deambula a um ritmo apressado, das redes sociais e da presença obrigatória nelas, mais que na vida. Esquecemos o quotidiano para viver num passado que é presente do indicativo de um tempo que está para vir. Se o acaso do destino que vos esbarrou com a leitura deste texto que acabo de escrever... for um local público, olhem nem que seja por segundos para quem têm ao lado, provavelmente já vos é familiar mas só hoje o viram ou lhe deram conta da existência.
Marco Gil in p3.publico.pt