Sagrado e profano

«Qualquer concepção religiosa do mundo implica a distinção do sagrado e do profano, opõe-se ao mundo em que o fiel se entrega livremente às suas ocupações, exerce uma actividade sem consequências para a sua salvação, um domínio onde o temor e a esperança o paralisam alternadamente, onde, como à beira de um precipício, o mínimo desvio no mínimo gesto pode perdê-lo irremediavelmente. Com toda a certeza, tal distinção nem sempre basta para definir o fenómeno religioso, mas pelo menos fornece a pedra-de-toque que permite reconhecê-lo com a maior segurança. De facto,seja qual for a definição que se proponha da religião, é notável que ela envolva esta oposição do sagrado e do profano, quando não coincide pura e simplesmente com a mesma oposição. A maior ou menor prazo, através de medições lógicas ou de verificações directas, todos nós somos levados a admitir que o homem religioso é antes de mais aquele para quem existem dois meios complementares: um onde ele pode agir sem angústia nem temor, mas onde a sua acção não compromete senão a sua pessoa superficial, outro onde um sentimento de dependência íntima retém, contém e dirige cada um dos seus impulsos e ondeele se vêempenhado sem reserva. Estes dois mundos, o do sagrado e do profano, apenas se definem rigorosamente um pelo outro. Excluem-se e supõem-se. Em vão se tentaria reduzir a sua oposição a qualquer outra: ela apresenta-se comoum autêntico dado imediato da consciência. [...] O sagrado pertence como uma oportunidade estável ou efémera a certas coisas (os instrumentos do culto), a certos seres (o rei, o sacerdote), a certos espaços (o templo, a igreja), a certos tempos (o domingo, o dia de Páscoa, de Natal, etc.) [...]. É uma qualidade que as coisas não possuem por si mesmas: acrescenta-se-lhes uma graça misteriosa. ‘O pássaro que voa – explicava a Miss Fletcher um Índio Dakota – pára a fim de fazer o seu ninho. O homem que anda, pára onde lhe apetece. Omesmo acontece com a divindade: o Sol é um lugar onde ela parou, tal como as árvores e os animais. Por isso se lhes reza pois atinge-se o lugar onde o sagrado permanece e assim se obtém dele a assistência e a benção.’»
Caillois, Roger, O Homem e o Sagrado,Lisboa,Edições 70, 1988, pp. 17-19