Uma análise da relação entre a Religião e do Riso - a partir de Umberto Eco

O riso é a fraqueza, a corrupção, a insipidez de nossa carne. É o folguedo para o camponês, a licença para o embriagado, mesmo a igreja em sua sabedoria concedeu o momento da festa, do carnaval, da feira, essa ejaculação diurna que descarrega os humores e retém de outros desejos e de outras ambições... (ECO, 1989, p. 487).
O riso não só teria o poder de suspender a razão como de desarmá- la. Na linguagem de Jorge de Burgos, liberta o indivíduo do medo do demónio, tornando-o vulnerável às suas armadilhas. Se o homem tiver a liberdade de rir, isso poderá levá-lo a afrontar a autoridade instituída e, talvez, o próprio Deus.
Parte-se do princípio de que toda religião fundamenta-se no temor. De modo paradoxal, o crente ama e teme a divindade. Assim, o temor é fundamental, e quem ri tende a não temer. O argumento de Burgos é expresso desta maneira: O riso libera o aldeão do medo do diabo, porque na festa dos tolos também o diabo aparece pobre e tolo, portanto controlável. Mas este livro poderia ensinar que libertar-se do medo do diabo é sabedoria. Quando ri, enquanto o vinho borbulha em sua garganta, o aldeão sente-se patrão, porque inverteu as relações de senhoria... (ECO, 1989, p. 488).
 Nesta linha de argumentação, Burgos cita Aristóteles, porém, para contradizê-lo: Que o riso é próprio do homem é sinal do nosso limite de pecadores. Mas deste livro quantas mentes corrompidas como a tua tirariam o silogismo extremo, pelo qual o riso é a finalidade do homem! O riso distrai, por alguns instantes, o aldeão do medo. Mas a lei é imposta pelo próprio medo, cujo nome verdadeiro é temor a Deus (ECO, 1989, p. 488). Por isso, justifica o cuidado que teve em esconder o famoso livro: [...] E deste livro poderia partir a fagulha luciferina que atearia no mundo inteiro um novo incêndio: e o riso seria designado como arte nova, desconhecida até de Prometeu, para anular o medo. Para o aldeão que rir, naquele momento, não lhe importa morrer: mas depois, acabada sua licença, e a liturgia impõe-lhe de novo, de acordo com o desígnio divino, o medo da morte. E deste livro poderia nascer a nova e destrutiva aspiração a destruir a morte através da libertação do medo. E o que queremos nós, criaturas pecadoras, sem o medo, talvez o mais benéfico e afetuoso dos dons divinos? (ECO, 1989, p. 488-789). Em síntese, para o velho monge, o riso torna profano o sagrado. Quando rimos, no fundo, estamos rindo de nosso medo e das nossas crenças; logo, levantando dúvidas sobre a fé. Além disso, o riso questiona verdades absolutas, dogmas estabelecidos e autoridades impostadas. Desse modo, o fiel religioso deve, de todos os modos, evitar o riso.
Não temos elementos históricos para afirmar que o cristianismo primitivo era totalmente contrário ao riso, como faz o velho bibliotecário. Embora o apóstolo tenha proibido aos cristãos de Éfeso stultiloquium e scurrilitas (palavras tolas e chocarrices), aconselha aos cristãos de Filipos: “Alegrai-vos sempre no Senhor; outra vez digo, alegrai-vos!” Talvez muitos, no tempo do apóstolo pensassem ser a alegria incompatível com a vida voltada para Deus e imaginassem um protótipo de cristão extremamente sério, carrancudo, fechado em si, que nunca brinca e, muito menos, ri. Se, na tradição filosófica o homem é um ser que ri, ou melhor, o único que ri, fazendo uma transposição para o plano teológico, podemos concluir que, sendo ele a imagem de Deus, o riso só pode ser um “atributo” divino. Se não explicitamente, pelo menos de modo implícito, podemos dizer que este princípio foi adotado nos primeiros anos do cristianismo. Porém, com o passar do tempo, o riso passou a associar-se à falta de pudor e, no plano ritual, era visto como associado aos cultos pagãos idolátricos, supostamente pecaminosos. Isso, evidentemente, contribuiu de modo decisivo para a desconfiança dos teólogos cristãos quanto ao seu valor e utilidade. José Rivair de Macedo, em obra que representa extensa pesquisa sobre o riso na Idade Média, analisa os valores a ele atribuídos, desde a sacralização clássica até a condenação pelos órgãos eclesiásticos. Dele transcrevemos esta afirmação: Dentro dos sistemas de valores cristãos, o lugar ocupado pelo riso sofreu importantedeslocamento, em primeiro lugar pelo fato de que daí em diante seus índices de sacralidade passaram a ser negados. De fato, os pensadores da Igreja dessacralizam o riso, banindo-o das formas aceitas do culto religioso e da liturgia. Além disso, atribuíram-lhe caráter demoníaco, associando-o às fraquezas do corpo e, portanto, ao pecado. (MACEDO, 2000, p. 250-251). Os polemistas cristãos, em virtude da natureza da crença que professavam, não reconheceram qualquer grau de sacralidade no riso, o que gerou certa desconfiança em relação ao mesmo. Vivendo numa sociedade em que o domínio da escrita seria privilégio de poucos letrados, os gestos e as palavras tinham extrema relevância. Chegou-se a pensar que, no corpo, haveria secretos movimentos do espírito que, escondidos no interior de cada pessoa, podiam, em determinados momentos, manifestar-se.
Os apologistas, buscavam na Bíblia os modos de conduta que deveriam acompanhar os bons cristãos, pois, até o séc. XIV, ela era considerada o livro do qual se tiram referências teóricas e regras práticas. Daí o fato de passarem a adotar a sobriedade e a continência, fazendo com que ambas as virtudes ascendessem na escala de valores defendida pelo cristianismo. Afirmando o controle do espiritual sobre o físico, condenou-se qualquer tipo de impulso desordenado. A prece, em clima de solidão, passou a opor-se às tendências que levavam ao riso. A vigilância sobre si mesmo deu lugar a um modo contido de se ver e apreciar as coisas, descartando, sempre quando possível, o riso. Ao observarem as religiões pagãs, alguns Pais da Igreja perceberam nelas a dimensão ritual do riso e, assim, não tardaram em estabelecer não apenas o contraste, mas envidaram esforços para a dessacralização do riso. Assim, o ato de rir passou a ser considerado gesto puramente profano e, obviamente, carregado de conotações negativas (MACEDO, 1997, p. 101). Em face da sobriedade e da continência moral, ambas consideradas virtudes inerentes à vida cristã, o riso tornou-se indecente.
Paulo de Góes in O problema do riso em O nome da rosa de Umberto Eco