Nietzsche: da recusa do “eu” à criação de si mesmo

O eu como causa do pensamento. Essa é a célebre certeza edificada por Descartes na história da filosofia. Nietzsche interpreta a proposição Eu penso como uma equivocada compreensão do eu. Se para Descartes pensar é o efeito de uma substância que precede a existência de qualquer raciocínio, Nietzsche interpreta este conceito como um grande mal entendido. Crê que através da extração do “eu”, pelo pensamento, se torna possível a apreensão do saber pura das coisas, é uma grande fábula, ou melhor, um dogmatismo que anseia reduzir todo conhecimento à unidade simples da consciência. Essa unidade é incapaz de isoladamente compreender a complexidade que é o eu. O eu é muito mais do que uma substância imutável, o eu também envolve forças, impulsos e instintos que de modo algum devem ser ignorados. Se Nietzsche se insurge contra os desprezadores do corpo não é por acaso. Esses desprezadores delegaram somente à consciência a responsabilidade de gerir a existência, limitando, assim, a interferência do corpo. Ora o corpo ao longo da tradição que se inicia com Platão, foi identificado como uma espécie de algoz da alma, como aquele que nos arrasta para o que é falso. Nietzsche inverte essa lógica e transforma o que antes era compreendido como a prisão da alma em a grande razão. O corpo é a grande razão, que nos possibilita um acesso muito mais diversificado, rico e seguro para a criação do Si-mesmo. Crítica à noção clássica de sujeito A crítica à noção clássica de sujeito ocupa um lugar privilegiado na filosofia de Nietzsche. Sua relevância consiste na destruição daquilo que aprendemos a denominar de “Eu”. Para o filósofo do martelo, a filosofia moderna, mormente, com Descartes instaura a noção de “Eu” que se torna uma das maiores ficções inventadas pelos filósofos. Nesse sentido, Nietzsche declara em Crepúsculo dos ídolos:
“E quanto ao Eu! Tornou-se uma fábula, uma ficção, um jogo de palavras: cessou inteiramente de pensar, de sentir e de querer!... que resulta disso? Não há causas mentais absolutamente! Toda a sua suposta evidência empírica foi para o diabo” . Essa compreensão tornou-se um abuso, uma inconsequência baseada em uma suposta evidência empírica. Com base nesse pensamento nós criamos um “mundo de causas”, um “mundo de espíritos”. Aqui estava presente uma psicologia arcaica, cuja atuação consistia em identificar na ação a consequência de uma causa, de uma vontade. O mundo, desse modo, tornar-se, portanto, uma multiplicidade de agentes que se introduz na anterioridade de todo acontecimento . Para tanto, segundo Nietzsche o homem exteriorizou os “fatores interiores” que ele mais acreditava, a saber, “o Eu”, “o espírito”, “a vontade”. A partir daí, houve a extração da noção do “ser” do conhecimento de Eu, compreendendo o Eu como causa. A coisa mesma, repetindo, a noção de coisa [é] apenas um reflexo da crença do eu como causa... E até mesmo o seu átomo, meus caros mecanicistas e físicos, quanto erro, quanta psicologia rudimentar ainda em seu átomo! – para não falar da “coisa em si”, do horrendum pudendum [horrível parte pudenda] dos metafísicos! Erro do espírito como causa confundindo com a realidade! Toda essa crítica nietzschiana da metafísica como subjetividade reporta principalmente a Descartes. Particularmente nos parágrafos 16 e 17 de Além do bem e do mal, Nietzsche expõe mais claramente suas objeções a Descartes. Convém salientar a significação dessa metafísica da subjetividade e como a ideia clássica de sujeito se entrelaça como o pensamento metafísico . Nietzsche compreende que a metafísica se ocupou, sobretudo, “da substância”, “da liberdade do querer”, que alimentou a crença na verdade inabalável que reside em cada coisa. Porém, o filósofo adverte que essa busca pela verdade não passa de uma mera crença que sustentou os “erros fundamentais do homem”. Para Nietzsche, Descarte é vítima desta crença. Descarte em sua Meditações metafísicas, após o processo de radicalização da dúvida, chega a sua primeira certeza, a saber, o cogito, ergo sum (penso, logo existo). Mediante a descoberta do “Eu penso”, Descartes estabeleceu a primeira certeza inabalável da filosofia moderna, isto é, se penso, necessariamente, existo: se há pensamento, é necessário que haja primeiramente um eu5 . Nietzsche, a partir disso, se contrapõe a Descartes: Quanto à superstição dos lógicos, nunca me cansarei de sublinhar um pequeno fato que esses supersticiosos não admitem de bom grado – a saber, que um pensamento vem quando “ele” quer e não quando “eu” quero; de modo que é um falseamento da realidade efetiva dizer: o sujeito “eu” é a condição do predicado “penso”. Isso pensa: mas que este “isso” seja precisamente o velho e decantado “eu” é, dito de maneira suave, apenas uma suposição, uma afirmação, e certamente não uma “certeza imediata”. 
Muitos supersticiosos, afirma Nietzsche, acreditaram que mediante o esforço do intelecto era possível obversar um objeto em sua nudez e pureza (leia-se, o conhecimento absoluto), como se não houvesse nenhum equívoco entre aquele que investiga e a coisa investigada. Essa “certeza imediata” envolve uma “contradição no adjetivo”. Se eu penso e se necessariamente pensar é efeito de um eu que é compreendido como causa, então de antemão já sei o que é pensar e o que é um “Eu”. Ora qual é o engodo dos dogmáticos - em especial Descartes? A precipitação em julgar que o acesso à verdade é possível. Para Nietzsche os filósofos dogmáticos se entorpeceram da “crença na verdade” e se prenderam, com efeito, em fábulas e ingenuidade induzidas pelo encanto das palavras. É perceptível que o que está, especialmente, em questão nessa crítica é a identificação da subjetividade – o célebre axioma Eu penso - com a unidade da simples consciência. A dissecação do pensamento revela que tal identificação é superficial, que não temos nenhum alicerce epistemológico ou metafísico para crer que há um eu substancial. A consequência da análise crítica da máxima “Penso, logo sou” consiste em abandonar a crença na substancialidade do “eu”, isto é, no “eu” como causa necessária do pensamento. O eu na realidade, para Nietzsche, é resultado do pensamento, produzido no e a partir do próprio pensar, a partir das regras gramaticais . Como se percebe Nietzsche compreende que a ideia “de substância”, “de eu”, “de espírito” se alicerça na crença na linguagem. A linguagem pertence, por origem, à época da mais rudimentar forma de psicologia: penetramos um âmbito de cru fetichismo, ao trazermos à consciência os pressupostos básicos da metafísica da linguagem, isto é, da razão. É isso que em toda parte vê agentes e atos: acredita na vontade como causa; acredita no “Eu”, no “Eu” como ser, no “Eu” como substância, e projeta a crença no Eu-substância em todas as coisas – apenas então cria o conceito de “coisa”. O problema para Nietzsche é que não conseguimos nos desembaraçar da noção de “Eu”, uma vez que nos iludimos com a gramática. Porém não apenas do “Eu”, mas também de Deus. Nesse sentido, toda crença na unidade substancial de sujeito como, igualmente, a crença num ser transcendental repousa na maneira pela qual avaliamos e julgamos9 o mundo. No parágrafo 21 de Além do bem e do mal, Nietzsche endossa que a ideia de causa de si mesmo é a maior autocontradição que até então foi inventada, uma verdadeira violência e disparate lógico embora essa falácia tenha conseguido obter êxito no homem. O conceito de livre-arbítrio, inclusive, carrega essa noção de causa sui. Tudo isso, se configura como um uso extremado da ideia de causa e efeito. Para Nietzsche o grande responsável pelas nossas ações não é o “em si”, mas nós mesmos: nossos julgamentos, avaliações, finalidades, justificativas procedem de nós. Mas nós insistimos em interpretar o conjunto de nossos valores como “em si”, e acabamos por julgar como verdade aquilo que não passa de mito. O corpo: a grande razão Platão endossa em sua filosofia a existência de dois mundos – a saber, o inteligível e o sensível. Todavia, a distinção entre mundos não se encerra no simples dualismo. Platão instaura, com efeito, uma hierarquização entre eles: o mundo das ideias (inteligível) é o real e o sensível (aparente) o ilusório. Nietzsche compreende que esse pensamento perpassou toda história da filosofia e que, sobretudo, este raciocínio é a expressão da decadência. Essa noção filosófica infundiu no homem a ideia de que o corpo é a fonte de nossos erros; gênese das paixões que nos prendem na irracionalidade. Para Nietzsche o corpo não é a res extensa de que afirmara Descartes, bem como não é a prisão da alma como defendera Platão. O filósofo do martelo propõe, portanto, a inversão do platonismo, isto é, o mundo aparente passa a ser o real e o inteligível o fictício. Nesse sentido, Para Nietzsche, o corpo é a grande razão: O corpo é a grande razão, uma multiplicidade com um único sentido, uma guerra e uma paz, um rebanho e um pastor. Instrumento do teu corpo é também tua pequena razão, meu irmão, que tu denominas “espírito”, uma pequena ferramenta e um brinquedo de tua grande razão. “Eu”, dizes tu, e estás orgulhoso dessa palavra. Mas aquilo que é maior, em que não crer – teu corpo e sua grande razão – não diz eu, porém faz eu. A tradição interpretou que a subjetividade do indivíduo repousava em seu interior como uma composição substancial. Isso que comumente se denominou de eu era apenas a expressão superficial da profundidade que é a grande razão. O corpo, a partir daí, não é identificado qual um invólucro que envolve a essência do eu, mas sim que ele faz “eu”. Nesse sentido, nós não mais somos possuidores de um corpo, nós somos um corpo. No parágrafo 12 de Além do bem e do mal, Nietzsche afirma que é necessário nos livrarmos da arcaica noção atomista da alma elaborada pelo cristianismo. A ideia de alma perene deve ser abolida de uma vez por todas. Entrementes, o filósofo admoesta que não é necessário aniquilar, totalmente, a “alma” mesma, como ocorre com os materialistas grosseiros (leia-se, naturalistas) que perdem a “alma” antes mesmo de conhecê-la. É necessário que novos horizontes se abram para a “hipótese da alma”: “conceitos como “alma mortal”, “alma como pluralidade do sujeito” e “alma como estrutura social dos impulsos e dos afetos” querem ter, de agora em diante, direitos de cidadania na ciência”. Como se percebe não é necessário desfazer-se do glorificado conceito de alma, mas reelaborá- lo, dá a ele uma nova compreensão, tendo o corpo como fio condutor. A antiga ideia que sustentou a confiança num eu inabalável, para Nietzsche se revelou como uma grande supertição causada pela crença cega nas estruturas da linguagem. Por outro lado, tomar o corpo como ponto de partida não é apenas um conceito inovador, mas, sobretudo um solo muito mais fértil e sólido do que “o velho e decantado eu”. O corpo - uma pluralidade de um único sentido, “uma guerra e uma paz” – é uma inteligência viva, uma sabedoria, um si mesmo, de modo algum desprovido de razão. Nessa nova perspectiva, o si mesmo não é mais identificado como uma anterioridade fixa que constitui o homem, isto é, o eu não está dado. É a grande razão, portanto, que é o ponto central que possibilita o reagrupamento de pensamentos e sensações. As multiplicidades de afetos que há em nós se mesclam, e ora um ora outro se expressam enquanto afeto dominante. Desse modo, a mudança é perene. Essa ideia, com efeito, desconstrói a suposta constância do eu. Como assevera Rosa Dias (2011), o indivíduo deve ser compreendido como um desenvolvimento de criação que consiste em incorporar cada vez mais traços de personalidade, em franco processo de expansão. Daí que, “fazer um eu” tem um significado capital na filosofia de Nietzsche. Todo mal entendido que perseverou na tradição filosófica em relação ao corpo representa um grande equívoco que deve ser extinto, mediante a aniquilação da partição estabelecida entre alma e corpo. Em outras palavras, o filósofo afirma no prólogo da A gaia ciência: A nós, filósofos, não nos é dado distinguir entre corpo e alma, como faz o povo, e menos ainda diferenciar alma de espírito. Não somos batráquios pensantes, não somos aparelhos de objetivar e registrar, de entranhas congeladas – temos de continuamente parir nossos pensamentos em meio a nossa dor, dandolhes maternalmente todo sangue, coração, fogo, prazer, paixão, tormento, consciência, destino e fatalidade que há em nós. Em Assim falava Zaratustra, a personagem afirma: “por trás de teus pensamentos e sentimentos, irmão, há um poderoso soberano, um sábio desconhecido – ele se chama Si-mesmo. Em teu corpo ele habita, teu corpo é ele”. É perceptível que Nietzsche se insurge contra os desprezadores do corpo, que nutrem um pensamento desencarnado, porquanto esses excluem da existência tudo aquilo que nos é caro: o desejo, o instinto, a sede de transgressão, a paixão, a tragédia, a angústia; em fim, tudo aquilo que é visceral. A crítica Nietzschiana tem por fito, ampliar os horizontes da razão, estabelecendo, assim, um novo modo de sentir, uma nova forma de criar em proveito de uma subjetividade oposta àquela petrificada, de uma subjetividade, efetivamente, autêntica. O corpo se expressa, pois, como um fenômeno mais complexo, mais rico que deve ser tomado como ponto de partida para o entendimento, inclusive da nossa faculdade de julgar. É ele o guia, que poderá abrir os horizontes para uma nova concepção de subjetividade, mais rica e intensa do que a simplificada unidade de uma consciência sintética. Carecemos, então, de uma ampliação da nossa capacidade de discernimento, para penetrarmos cada vez mais profundamente nessa grande razão que é o corpo. A simples consciência não é capaz de dar conta da subjetividade, dado que ela não é imaculada. Nesse sentido, ela não tem condições de sozinha reivindicar autarquia. Por isso a necessidade de investigar os enigmas do corpo. Tornar-se Si-mesmo, então, não implica de modo algum se enredar na constância de um eu definido. Pelo contrário, a criação subjetiva que outrora se assentava na conservação da consciência deve reorientar-se a partir de acontecimentos distintos, plurais e até mesmo insuspeitos. Enquanto a antiga crença na unidade sintética do eu, sustentava uma subjetivação estática e ossificada, o estudo do corpo proporciona o alargamento das possibilidades do entendimento do Si-mesmo. Afinal não somos “máquinas de registras e objetivar”. Precisamos, sim, tomar partido, das paixões, dos tormentos, dos afetos, da potência, da coragem, e da razão que pulsa em nossas entranhas.
ÍCARO SOUZA FARIAS in revistalampejo.org