O orgulho nacional num mundo ainda aldeão

Sempre que há um cataclismo, acidente ou ataque terrorista, a primeira pergunta dos telejornais é: algum português morreu, ou ficou ferido com gravidade? Não interessa quantos morreram, o que interessa é se há portugueses. A segunda pergunta é: seria provável algum português ter ficado ferido com gravidade? Quer dizer: poderia facilmente acontecer a um português? O tempo de cobertura da notícia dependerá da resposta a estas duas perguntas. Vou exemplificar.
Um ataque suicida no Paquistão matou mais de 70 pessoas, e feriu mais de 300, neste fim-de-semana. Pergunta 1: algum português morreu, ou ficou ferido com gravidade? Não. Pergunta 2: seria provável algum português ter ficado ferido com gravidade? Não, é longe de mais para isso. Conclusão: 5 minutos de cobertura televisiva.
Um ataque terrorista na Bélgica matou mais de 30 pessoas, e feriu cerca de 200, na semana passada. Pergunta 1: algum português morreu, ou ficou ferido com gravidade? Não. Pergunta 2: seria provável algum português ter ficado ferido com gravidade? Sim, todos os dias passam centenas ou milhares de portugueses por aquele aeroporto ou por aquela estação de metropolitano. Conclusão: 5 horas de cobertura televisiva.
Uma carrinha de portugueses despistou-se em França e matou 12 pessoas, na semana passada. Pergunta 1: algum português morreu, ou ficou ferido com gravidade? Sim. Conclusão: 5 dias de cobertura televisiva.
Admito que o mesmo aconteça nas televisões da esmagadora maioria dos países do mundo. Mas não deixa de ser ridículo que, quando acontece alguma desgraça por esse mundo fora, a primeira pessoa a levantar-se da cama a altas horas para vir prestar declarações à televisão seja o Secretário de Estado das Comunidades Portuguesas, qualquer que ele seja. O que nem é racional, se pensarmos bem. Porque poderia argumentar-se: é para descansar familiares que possam estar preocupados. Mas é óbvio que estes terão notícias mais rápidas por outras vias. Aliás, o nome das vítimas nunca é revelado. Por isso, a Secretaria de Estado deveria apenas disponibilizar (não sei se o faz) linhas para atendimento telefónico. Mas não: tem de vir um governante à televisão para mostrar que o Governo se preocupa com os portugueses.
Mas a atitude não é racional (sobretudo) por outra razão: devemos admitir que a morte de um belga que não conhecemos dói menos do que a morte de um português que não conhecemos? Ou seja, será que, para as pessoas que não conhecemos e com as quais não temos laços de afecto, há uma hierarquia de dor? Do estilo: se é da minha região é pior do que se for de outra região do país? E se for do meu país é pior do que se for de outro país da Europa? E se for europeu é pior do que se for africano? E se for africano é pior do que se for asiático? Penso que o jornalismo deveria repensar o privilégio da proximidade aldeã.
Mas o que mais me irritou foi a cobertura dada ao acidente da carrinha. Com vários absurdos envolvidos, que talvez não fossem iguais em países mais evoluídos.
Primeiro, o orgulho absurdo por a notícia ter tido honras de abertura na TF1, em França. Houve até um jornalista que teve um assomo de excitação e explicou que tinham ali morrido praticamente tantas pessoas como no aeroporto de Zaventem. Não sei o que pretenderia transmitir. Era um concurso de importância noticiosa?
Depois, a referência permanente à Páscoa. Como se as mortes fossem mais lamentáveis por o motivo da viagem ser o festejo da Páscoa.
Por fim, foi contrastar a cobertura desmesurada com aquela que penso ser a recepção da notícia por parte dos franceses civilizados: uma carrinha de portugueses transportava 13 pessoas quando só podia transportar 6, conduzida por um miúdo que só tinha 19 anos e não tinha idade nem carta que lhe permitisse fazer tal transporte, fez uma ultrapassagem mal feita e provocou um desastre brutal. Ou seja, orgulhamo-nos de uma notícia que reforça a má imagem que os portugueses têm nesses países e a ideia, que tanto prejudica a sociedade portuguesa, de o «desenrascanço» resultante da esperteza saloia substituir com sucesso a competência resultante do estudo, do esforço e do cumprimento das regras estabelecidas.
Luís Valente Rosa in visao.sapo.pt