Da natureza das coisas

1 - Não é que não soubéssemos, mas foi-nos uma vez mais lembrado que há uns indivíduos especializados em guardar o dinheiro de ladrões, assassinos em massa, traficantes, terroristas, corruptos e gente do género. Esses indivíduos vivem em países que não só acham perfeitamente legítimo esconder e proteger o dinheiro de bandidos, como incentivam essa ocupação. Temos assim estados que prendem receptadores de telemóveis roubados numa qualquer esquina desse país, mas protegem assaltantes de bancos desde que o assalto tenha sido feito no outro lado da fronteira.
Este tipo de Estados existirão sempre.
Em primeiro lugar porque há procura para os seus serviços. E havendo procura haverá sempre oferta. Nada que ver com incapacidade de gerar receitas por outros meios. É uma escolha política.
Sim, a lei e as autoridades, nos países onde se cometem os crimes, podem apertar o cerco aos malfeitores, a saída de dinheiro pode ser dificultada, mas sobrarão sempre as ditaduras, os estados falhados, as atividades criminosas globais. Esse dinheiro sujo, de forma mais ou menos complicada, entrará em democracias, em países que lutam contra os crimes e acabam a proteger os criminosos. E a razão é sempre a mesma: se não o fizerem, alguém o fará. Proíba-se em Portugal a compra de imobiliário por empresas off-shore e é certo e sabido que a procura no sul de Espanha disparará e com ela se criarão empregos e empresas de decoração, jardinagem, etc etc...
No mundo ideal, os Estados, nomeadamente os democráticos, unir-se-iam e se comprometer-se-iam a não aceitar dinheiro devidamente identificado e de que se desconhecesse a origem. Nem o mais inocente dos homens acredita que isso poderá acontecer, pelo menos através de impulsos de justiça e bondade. Não é por esses valores, feliz ou infelizmente, que os estados se regem. Regem-se em função de interesses, na melhor das hipóteses, em função dos das populações locais. É só mudarão a sua atitude apenas se isso lhe trouxer algum benefício - ou não lhe provocar danos maiores.
2 - Essas espécies de receptadores também tratam do dinheiro de gente que tenta "otimizar" a sua contribuição fiscal. Aproveitando a possibilidade, que a globalização gerou, da quase livre circulação de capitais, tenta-se encontrar o local onde se paga menos impostos. Em termos muito simples, alguém que ganha dinheiro aproveitando as escolas, as estradas, os tribunais, a saúde e todos os demais bens proporcionados por um determinado Estado, coloca-o em locais onde não pagará por ter usufruído desses bens.
Quem tem capacidade para recorrer a estes esquemas são apenas os mais ricos, os gigantescos aglomerados, os bilionários. Aqueles que mais ganham dinheiro connosco, são aqueles que acabam por pagar muitíssimo menos por todas as estruturas que permitem a um Estado funcionar, e dar melhores condições de vida para todos.
A perversidade é total. As nossas comunidades têm como cimento algo de muito simples: a confiança. Não se prospera na desconfiança, na dúvida, no conflito constante.
Temos de acreditar, entre outras coisas, que todos pagam os impostos devidos. Que ninguém por ser mais rico, mais inteligente, mais bem nascido tem mais direitos. O facto da lei não ser capaz de proteger esse valor fundamental tem uma perigosíssima capacidade desagregadora da comunidade: se a lei não protege os mais fracos, é a lei do mais forte que prevalece. Há um agravamento factual da desigualdade perante a lei e um aumento da desigualdade económica. Porque, no fundo, os impostos tornam-se regressivos: quem tem mais paga menos.
Isto, claro está, provoca também uma desconfiança brutal nas instituições. Fica mais claro que o poder político pouco pode contra o poder financeiro. E mais uma vez, estamos perante um fenómeno conhecido e que a globalização potenciou: o capital circula livremente, mas o poder político permanece local.
Esta vitória do poder financeiro, dos fundos, dos mercados, é uma das grandes ameaças às nossas democracias. E os off-shores são o grande instrumento desse poder.
Os Panama Papers vão ajudar à penalização social dos que utilizam os off-shores, a uma maior consciencialização da importância do poder político sobre o poder financeiro, a um debate sobre se fomos demasiado longe na globalização financeira e se essa é moralmente justa, se a democracia só pode funcionar dentro de fronteiras muito protegidas. Tudo isso será importante. Mas, mais uma vez, e é bom que fique claro, enquanto um Estado puder beneficiar um tostão prejudicando um outro em um milhão, assim o fará. Temos que procurar mecanismo de coação que defendam as nossas democracias. A bondade universal não chega, nunca chegou.
Pedro Marques Lopes in www.dn.pt