Síndroma de Peter Pan

Nasci nos anos 80. Faço parte de uma geração que já nasceu depois do PREC, que viveu a primeira
infância com a entrada de Portugal na CEE e cresceu na década de 90, em que tudo parecia correr bem: subsídios europeus, obras públicas, crédito bonificado à habitação e um fulgurante otimismo de que no futuro ia ser ainda melhor.
A geração anterior vivera a ditadura e conhecia de perto a dureza da vida antes de Abril, num país de muita miséria, emigração, Guerra Colonial e em que quase tudo acima da frugalidade era luxo. Depois de Abril, a geração anterior foi tendo a oportunidade do emprego-para-a-vida e fez tudo para preservar a estabilidade. A geração anterior cuidou sempre da poupança, primeiro para comprar casa própria, depois para dar uma boa educação aos filhos e depois para garantir a velhice. A geração anterior trabalhou sempre muito, confiando que para nós ia ser tudo mais fácil.
Ora, a crise económica de 2008 em diante e o regime austeritário que se seguiu, vieram mudar esse paradigma. E sem saber o que nasceu primeiro, entre tempos diferentes e tempos de crise, creio que o espírito da minha geração não só é muito distinto do anterior como está marcado por uma espécie de paradoxo existencial. (O berço que parecia ser de ouro, foi penhorado. E logo agora que era a nossa vez.)
Somos a geração mais escolarizada de sempre. Temos os diplomas todos. Mas quando íamos começar o emprego-para-a-vida, deixou de haver empregos-para-a-vida. A instabilidade transformou-se em zeitgeist e muitos de nós resolveram surfar. Já que nos tornámos eternos estagiários, eternos bolseiros, eternos precários, desdenhámos dos empregos-para-a-vida e passámos a (ter de) trabalhar como freelancers. O desafio seduz, a liberdade de não ter horários também.
Mas trabalhamos muito, por muito pouco e, quer haja dinheiro ou não, há que pagar a Segurança Social.
Não sei se por reação ou convição, sobrepusemos a realização pessoal à busca pela estabilidade. Queremos fazer o que gostamos, mesmo que nem sempre seja possível e, talvez por fazermos alarde dessa teimosia (pueril?), nos acusem muito injustamente de não sabermos o que custa a vida.
Por estudarmos até mais tarde, por não termos estabilidade, por querermos fazer o que gostamos realmente (na lógica do se é para ganhar pouco e viver na corda bamba, é melhor fazer o que se gosta), por não conseguirmos poupar (nem para a casa própria, nem para os filhos que não temos, muito menos para a reforma que não existirá), desenvolvemos uma espécie de síndroma de Peter Pan.
Somos "filhos" até mais tarde e vamos adiando a vida "adulta" como a observámos. Ganhamos a vida como podemos, fazemos por ela, mas os tempos e etapas da nossa vida foram-se desfasando da norma e da biologia. Adiamos os filhos até ao limite e vamos vivendo (em maior ou menor conflito) com essa procrastinação, sentindo a pressão social e, pior ainda, o medo de mais tarde ser tarde demais.
Em criança, acreditava que aos 30 ia estar tudo resolvido. E hoje, neste tempo de contradições e tendo em mim os paradoxos existenciais da minha geração, acho que, se por um lado, vivemos tempos desafiantes e que é bom descobrir novas possibilidades de vida, uma coisa é a instabilidade que escolhemos para nós, sendo outra bem diferente a falta de alternativa que fez disparar novamente a emigração. Na mesma lógica, não se questiona o nosso direito de adiar a maternidade, porque queremos simplesmente, ou porque escolhemos dar prioridade a outros projetos de vida, mas isso é positivo enquanto decisão tomada e não simplesmente porque este país não nos dá condições para escolher diferente.
Quando eu nasci, a taxa de natalidade era o dobro da que é hoje. Temos uma das mais baixas taxas de natalidade da Europa (senão a mais baixa). E não é por nossa vontade. É mesmo porque, com a crise, se instalou um novo paradigma e, hoje, sabemos bem que amanhã ainda pode ser pior.
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