Avaliação em filosofia e subjectividade

A ideia de que a avaliação em filosofia é necessariamente subjectiva, ao contrário do que acontece em disciplinas como a física, a história ou a matemática, é o resultado de uma confusão que estas páginas visam esclarecer. Não está tanto em causa defender que a avaliação em filosofia é objectiva, mas antes defender que é falsa a dicotomia entre disciplinas cuja avaliação é objectiva e outras cuja avaliação é subjectiva. Na verdade, as disciplinas que geralmente se pensa serem susceptíveis de uma avaliação mais objectiva são, em virtude deste mito, objecto de uma avaliação imensamente subjectiva.
A ideia em que se baseia este mito é a seguinte: Numa disciplina como a Matemática, a Física ou a Lógica a avaliação pode ser perfeitamente objectiva porque uma equação foi bem ou mal resolvida; um cálculo ou fórmula da física foi bem ou mal realizado; os passos de uma demonstração lógica estão todos correctos ou não. Assim, a avaliação é completamente objectiva porque trata-se apenas de ver se o estudante resolveu bem a equação, ou realizou bem o cálculo, ou demonstrou bem o argumento.
Que esta ideia é fantasiosa começa a perceber-se quando nos perguntamos que pesos relativos dar a cada erro ou a cada acerto. Uma demonstração lógica correcta com apenas um deslize, que cotação recebe? Um estudante que apresenta uma demonstração correcta mas cinzenta deve ter a mesma classificação de um estudante que apresenta uma demonstração igualmente correcta mas particularmente brilhante?
Como se vê, a pretensa objectividade na avaliação de disciplinas deste jaez começa a cair por terra. Pior ainda acontece quando nos apercebemos que a escolha dos materiais sujeitos à avaliação e o modo como tais materiais são apresentados estão longe de ter o grau de objectividade que o mito apresenta. Pois imagine-se dois professores, X e Y, de lógica ou matemática ou física. X ensina apaixonadamente os seus estudantes, detém-se na compreensão das coisas, dá-lhes uma imagem real da disciplina, não esconde os problemas em aberto, exige-lhes que pensem e compreendam. Y limita-se a dar aulas cinzentas, automáticas, treinando os seus estudantes como macacos para escrever carreiras de símbolos no papel cujo significado lhes escapa. X e Y vão agora avaliar os seus alunos. E X faz testes nos quais os estudantes têm de mostrar que compreendem o que estudaram; Y faz testes para macacos e papagaios, que consistem unicamente em continuar a pôr no papel os intermináveis símbolos e fórmulas que há meses andam a escrever nos cadernos. E agora vamos ver os resultados. O aluno x teve X como professor e teve um 16; é um aluno inteligente, que compreende razoavelmente o que estudou, apesar de lhe escapar alguns aspectos. O aluno y teve Y como professor e teve também 16; mas é um aluno absolutamente bronco, incapaz de compreender a diferença entre um sapato esquerdo e direito, mas que à força de decorar métodos mecânicos e de escrevinhar fórmulas que não percebe acabou por apanhar a coisa. E aqui temos a pretensa objectividade da avaliação destas disciplinas em todo o seu esplendor: é um mito.
E é um mito porquê? Porque a objectividade na avaliação não depende apenas de saber se o teste pode ser classificado automaticamente, mas igualmente de saber que métodos e conteúdos foram escolhidos pelo professor nas suas aulas, que quer ele realmente ensinar e como está ele a tentar fazer isso. Se tudo o que o professor quer ensinar é a repetir fórmulas e palavras e datas e factos, então vive na mais perfeita das ilusões da avaliação objectiva. O preço a pagar é um ensino tonto, frio, distante da realidade, formalista e sem futuro. E os seus estudantes melhor classificados ficam pior preparados do que os estudantes mais fracos do professor que procura dar uma imagem realista da disciplina, apelando à compreensão do que está em causa e ao sentido crítico do estudante, exigindo raciocínio e castigando o repetitorium.
Em suma, o mito da avaliação objectiva em disciplinas como a matemática, a lógica ou a física é conseguido à custa de transformar estas disciplinas em imagens pálidas do que na realidade são. E a consequência é um empobrecimento do ensino e a impossibilidade da sua excelência.
Contudo, isto não significa que toda a avaliação é subjectiva, no sentido ridículo de tudo depender das idiossincrasias do professor, das suas preferências e manias, preconceitos e ódios de estimação. A avaliação que se rege por estes parâmetros — e infelizmente há muita a reger-se por eles — é apenas uma farsa infeliz de quem é incapaz de ser um bom professor. Ora, é precisamente quando comparamos este tipo de avaliação, verdadeiramente subjectiva, com o que acontece na avaliação em filosofia concebida pelos melhores professores que compreendemos duas coisas: que o que conta não é saber se a avaliação é objectiva ou subjectiva, mas justa e correcta, ou injusta e incorrecta; e que o pretenso contraste entre disciplinas como a lógica ou a matemática e a filosofia é enganador, sendo possível conceber uma avaliação muito mais justa e correcta em filosofia do que muitas formas correntes de avaliação em lógica ou matemática.
Assim, o primeiro aspecto a ter em conta na avaliação é decidir o que se vai avaliar. Evidentemente, isto só pode fazer-se decidindo primeiro o que vai leccionar-se. E esta é a primeira escolha fundamental, que vai determinar a avaliação. Saber escolher as matérias adequadas é fundamental: os aspectos fundantes e fundamentais das disciplinas em causa, que permitirão ao estudante uma progressão segura na compreensão das coisas. Não se pode, pois, decidir leccionar seja o que for que "dá jeito para avaliar" — nem aquilo que o professor mais gosta porque gosta. Veja-se um mau exemplo do ensino da lógica aristotélica: como é muito fácil e dá a ideia de objectividade, decide-se ensinar as regras dos silogismos e a determinar se um dado silogismo é ou não válido percorrendo as regras uma a uma. O que fica de fora é a compreensão do que é um argumento silogístico, da razão de ser daquelas regras, dos limites e importância da teoria lógica de Aristóteles; ficam ainda de fora noções centrais como a de validade por oposição a verdade, argumento sólido por oposição a argumento meramente válido, falácia por oposição a validade, e argumento dedutivo por oposição a outros tipos de argumentos. O resultado final é uma avaliação aparentemente mais objectiva, mas que na verdade é pior do que uma avaliação baseada nestes conteúdos, de longe mais importantes do que saber decorar meia-dúzia de regras e saber usá-las mecanicamente.
Quando se abandona o mito do contraste na avaliação entre disciplinas como a matemática ou a lógica e disciplinas como a filosofia, compreende-se que o que conta é o rigor e a qualidade da avaliação, e que o que está em causa não é ser objectivo ou subjectivo, mas ser mais ou menos objectivo. Ora, avaliar correctamente um estudante em filosofia é uma tarefa tão objectiva quanto avaliar correctamente um estudante de lógica ou matemática. É só uma questão de saber escolher os conteúdos a leccionar, de saber como se fazem perguntas e de saber como se avaliam respostas. Mas tudo isto supõe um domínio sólido da disciplina, uma compreensão abrangente da disciplina e da sua importância, sendo portanto contrário ao registo do funcionário público que se limita a cumprir mais uma formalidadezinha — é que, como dizia Eça de Queirós, a formalidadezinha mais importante no ensino é que é preciso saber.
Ora, quando se sabe, sabe-se o que é mais importante e fundamental em cada área; por onde se deve começar; e como se deve ensinar e avaliar. No livro O Lugar da Lógica na Filosofia (Plátano, 2003) dou vários exemplos de como se avalia correctamente e incorrectamente em lógica; e no manual A Arte de Pensar (Didáctica, 2003) é também nítido como se pode avaliar em filosofia com segurança e sem o mito da subjectividade. O propósito deste artigo foi tão-só o de sacudir o mito da subjectividade da avaliação em filosofia. Agora, é necessário cumprir a tal formalidadezinha a que Eça se referia.

Desidério Murcho in criticanarede.com