Os sós

Quando perdi a casa perdi tudo. Antes tinha uma vida boa, mulher, emprego, carro, casa. Tinha tudo. Como é que tudo se dissipou? Houve tempos de fausto.
O que é estar só? Como falar da solidão, um dos flagelos do homem moderno, sem acumular clichés? Há um artigo neste jornal cujo título diz mais do que todas as imagens do Mundo: “Velhos e sozinhos. A GNR é a família que aparece”.
Não são só eles. Há cada vez mais solidão. Sós na multidão é frase fácil e batida mas verdadeira. E a tecnologia, no seu reverso sombrio, contribui para o afastamento físico. Velhos, doentes, sem abrigo, alienados da Internet, miseráveis do Mundo: estamos mais sós?
1. Ainda hoje não estou em mim, não entendo, o que te fiz eu para que te quisesses separar de mim, não entendo, dávamo-nos bem, não nos dávamos bem? E os miúdos, Miguel, porque os fizeste sofrer, desculpa, porque os fizemos sofrer assim? Quinze anos, Miguel, 15 anos não são 15 dias e eu amava-te, amei-te, ainda te amo, no princípio foi a estranheza, quando me falaram da relação que mantinhas não acreditei, como podia acreditar se ela é minha amiga, perdoa, se ela era minha amiga, não acreditei.
Mas os sinais avolumaram-se, acabei por aceitar que me enganavas, dispus-me a perdoar. Como poderia não te perdoar, os miúdos, Miguel, e além disse tu eras o meu amor de adolescência, o meu amor da vida toda, quis perdoar-te e não deixaste, pareceu-me impossível não te deixares perdoar, “não te mereço”, disseste, quiseste o fim, foi o fim.
Estamos divorciados. O processo célere passou num ápice como um ferro em brasa por sobre o meu corpo; esta noite é a primeira em que estou sozinha, os miúdos foram passar o fim de semana contigo. Estou sozinha. O silêncio é o pior. Se ligo a televisão o silêncio aumenta. Não há vozes na cozinha, tu não vais chegar dentro de instantes e perguntar “o que é o jantar?”, os miúdos nunca mais se aninharão entre nós dois, porque já não há nós dois. Nunca mais haverá nós dois. Estou sozinha, Miguel e a solidão morde com dentes afiados. Esta dor nunca te perdoarei.
2. A vista foi o último dos sentidos a falhar. Entorpecida pelo reumático, o gosto pela comida perdi-o há muito, já mal ouço, restavam-me as novelas da tarde, ler o jornal que o vizinho deixa à minha porta, mas aos poucos deixei de ver, primeiro foram-se as letras, depois a imagem esborratada, difícil distinguir as caras, ainda pensei em ir ao médico mas eu tenho lá dinheiro para ir ao médico. Deixei-me ficar, ouço rádio, alto e mal, sinto pelo menos a vibração, ainda sinto alguma coisa, diferente do silêncio nesta casa, que o meu marido me deixou quando morreu, deixando-me sozinha nela.
Já lá vão quase 10 anos. Recordo bem os primeiros tempos desse tempo sem ele, quando, consumado o drama e consumida eu de desgosto, vocês vieram, meus filhos adultos, com as vossas vidas deram-se ao trabalho de me visitar, de início ficavam cá, à vez, por turnos, e eu acordava de manhã e ia fazer chá, torradas para vos levar à cama, e eram outra vez pequeninos e eu nova outra vez, feliz outra vez. Foi como se tudo voltasse a ser como fora, como se tudo voltasse a valer a pena. Mas depois eles partiram cada um para seu país, para a sua cidade, e eu comecei a sair menos, a dona lurdes da mercearia traz-me a comida; as minhas duas grandes amigas morreram, uma após a outra, deixou de haver razão para sair e eu deixei de sair, com a perda dos sentidos fui fazendo cada vez menos, a ir da cama para a sala da sala para a cama para a sala, a televisão ligada e o telefone a tocar menos.
Os meus filhos ainda me telefonavam de tempos a tempos, diziam-me que havia uma coisa chamada skype mas eu não percebo nada disso, nunca liguei, e depois deixei de ouvir, vocês deixaram de vir, dei-me então conta de que estava sozinha. Penso às vezes na morte, e suspeito que morrerei sem ninguém dar conta. Ficarei a apodrecer e o cheiro acabará por chamar a atenção dos vizinhos, a dona lurdes aperceber-se-á que não recolho a comida, os meus filhos virão e a porta não se abrirá. Preocupa-me dar trabalho, mas contra isso nada posso. Os músculos não obedecem, o corpo recusa-se a ouvir-me, também ele me abandonou.
3. Milhares de amigos virtuais povoam a minha vida há anos. Todos os dias lhes mando mensagens, convivo à distância. Quatro mil quatrocentos e 22 “amigos”… vinte e três… vinte e quatro… Deixei de lado os companheiros antigos, físicos, carnais. Dão trabalho e não respondem gosto a cada coisa que digo. São um velho artigo gasto. De casa faço tudo, o trabalho é virtual, de venda à distância; e há depois as longas noites nos chats, a colocar fotos no instagram, a percorrer distraidamente o que os amigos põem no facebook, às vezes até (não digam nada, é proibido) faço um pouco de “hacking”, a vida tem de ser vivida com risco, adrenalina. Há de tudo nesta vida virtual, publicar, partilhar, hashtag(ar), ligar ligar ligar e gostar gostar gostar, parabéns amigo pela promoção, força amigo vais vencer isso, nunca os vi, tanto melhor, as emoções são mais fortes, os sentimentos mais puros.
Há dez anos que quase não saio, controlo as contas na net, faço negócios on-line, tenho os amigos todos na ponta dos dedos. E não perco tempo em filas, não me encho de areia nas praias, não me misturo com multidões de desconhecidos em cinemas, centros comerciais, estádios. Sou feliz, completamente feliz, ainda que reconheça ter ganho algum peso e estar a ficar balofo. Mas também isso resolvi, aboli os espelhos, virei-os ao contrário, também isso é óptimo porque nenhum dos meus amigos actuais critica o meu aspecto. Lol. Nunca estive tão acompanhado. Boa amigo XraY, grande “post” – gosto de saber que teve uma netinha. Posso ser amigo dela também?
4. Quando perdi a casa perdi tudo. Antes tinha uma vida boa, mulher, emprego, carro, casa. Tinha tudo. Como é que tudo se dissipou? Houve tempos de fausto. O emprego no banco garantia o suficiente e ela também ganhava bem. Não prescindíamos da viagem anual ao estrangeiro, do Algarve, trocar de carro de três em três anos; de vez em quando contraíamos um crédito, o dinheiro era fácil de arranjar, e ainda mais de gastar.
A chegada da crise levou ao fim do casamento: começaram as zangas, o banco exigiu o pagamento das dívidas, contraí novas para pagar as antigas, até ao dia em que ela saiu de casa e tudo se desmoronou. Entrei em depressão, pelo menos foi isso que disse o médico da empresa; passado algum tempo, fizeram-me um convite para sair – negociar a saída, foi a expressão usada -, aceitei, nessa altura aceitaria qualquer coisa, ainda fiz uma viagem com uma namorada que arranjei, mas ela não era a minha mulher e fartei-me, ou ela fartou-se, também me deixou. Depois acabou o dinheiro do desemprego, usei o que restava da indemnização até não haver mais. Finalmente, tive de vender a casa. Aluguei um apartamento, gastei o pouco que sobrava; e nem sombra de emprego, ninguém queria um quarentão com ar gasto e há anos sem trabalho.
Apercebi-me então que os amigos tinham todos desaparecido, um a um, num processo lento e misterioso. Não restava ninguém. Hoje vivo debaixo de uma ponte, sei que é um cliché mas é verdade. No dia em que tive de sair do apartamento – não pagava a renda há 6 meses – demorei-me um pouco à porta a olhar para trás. Naquele pequeno hall, como num cinema, revi toda a vida vivida, os rostos que outrora fizeram parte dela; já não me diziam nada. Não me fazem falta. A minha vida agora é esta e aqui. Estar sozinho é normal, não passa de um pormenor.
5. Deixaram-me no hospital quando adoeci e já não voltaram. No caminho para cá, o meu filho começou uma estranha conversa sobre o lar, disse que estavam com dificuldades financeiras e se calhar não iam poder continuar a pagá-lo. Ainda perguntei “mas então para onde hei-de ir?”, esperançado que respondesse “para nossa casa” mas não disse nada, virou a cara e mudou de assunto.
Estou aqui há 6 semanas, já ameaçaram mandar-me para casa várias vezes – dar-me alta – mas recuam quando lhes digo que não tenho casa para onde ir (e quando falam nisso pioro substancialmente, já tive crises, caí ao chão, sufoquei). Hesitam, recuam, melhoro logo. Agora a minha casa é esta. Os meus amigos daqui são melhores para mim do que os meus parentes de além, incluindo os filhos, claro, que quase deixaram de telefonar, é só “está melhor pai?” e quando eu digo que me querem dar alta respondem “deixe-se estar aí pai, aí tratam bem de si”. Agora espero ansiosamente o turno da enfermeira Sofia, traz-me sempre uma lembrança, ou que o doutor Sotto me venha visitar, senta-se à beira da cama, pergunta-me como estou, interessa-se, ou ainda a auxiliar Mónica, conta-me histórias, tem graça a contar histórias; eu aqui não me maço nada, não é como no lar em que os outros velhos eram ainda mais chatos do que eu, aqui estou bem daqui não saio.
Há dias o doutor Sotto começou a dizer-me que devia pôr-me bom, estava na altura de voltar à minha vida, eu disse-lhe que não tinha outra vida, ensombreceu, perguntou se eu afinal não queria melhorar, sair dali, e eu respondi: “saio daqui com gosto, doutor, saio assim que morrer”. Não antes.
Será a solidão a epidemia dos tempos modernos? Uma solidão reflectida, de amadurecimento da nossa individualidade, é uma coisa positiva. Mas implica ao mesmo tempo e de forma continuada, uma capacidade de socialização – de relacionamento com os outros – que a sociedade pós-moderna tende a desvalorizar, através do culto das relações efémeras, do individualismo exacerbado, do egoísmo na fruição dos frutos da modernidade, sejam esses fenómenos mediados ou não pela evolução tecnológica.
A solidão mata. Mas mais do que isso, a solidão dói. É uma espécie de tortura auto-infligida (pela sociedade actual aos seus membros), pior do que muitos dos piores tormentos inventados pelo ser humano ao longo da História.
Antes só do que mal acompanhado? O melhor mesmo é a companhia, sobretudo a boa.
Paulo de Almeida Sande in observador.pt