Os valores europeus são mais importantes do que os económicos

Se se viver na Itália ou na Espanha, é fácil defender a União Europeia. Pode-se apontar simplesmente as muitas áreas de política comum, salientar uma pequena lista de conquistas e concluir por aí a argumentação. Sim, há um aumento do euroceticismo nesses países. Mas se realizassem um referendo sobre a permanência, na UE não haveria dúvidas no resultado. A UE tornou-se parte do seu ADN político.
É mais difícil defender a causa pró-europeia em relação ao Reino Unido. Mas eu vou tentar. É difícil porque o país não participa na maioria das áreas políticas importantes da UE: o euro, o espaço Schengen, de livre circulação, justiça e assuntos internos e a Carta dos Direitos Fundamentais. No início deste ano, David Cameron conseguiu adicionar mais alguns itens quando obteve o seu acordo especial no Conselho Europeu. O seu governo poderá cortar prestações associadas ao trabalho aos cidadãos da UE. E o primeiro-ministro conseguiu isentar o Reino Unido do objetivo de integração política e de uma "união cada vez mais estreita".
Então, o que é que se pede ao eleitorado britânico que vote nesta quinta-feira? Da perspetiva britânica, a UE consiste numa única área aduaneira e num mercado único. Eles são importantes para a City de Londres e para as grandes empresas industriais. Mas não são importantes para toda a gente. Se a vitória for pela permanência, o Reino Unido continuará na esfera exterior do círculo interno. Se a votação pela saída ganhar, o país vai-se juntar à esfera interna do círculo exterior.
Existe argumentação a favor do círculo interno. Os vários países da União Europeia têm não só interesses comuns como também partilham valores. Mesmo no seu atual estado de desolação, a UE é um veículo mais poderoso para proteger e projetar globalmente esses valores do que os governos nacionais.
Que valores são esses? É difícil bater o lema da Revolução Francesa: liberté, égalité, fraternité. Poder-se--á preferir termos diferentes e enumerá-los numa outra ordem.
Eu transcrevê-los-ia da seguinte forma: a liberdade acompanhada de abertura e tolerância, igualdade de oportunidades e uma forte defesa do bem público. Este último poderia incluir noções mais abrangentes de distribuição de rendimentos e de proteção social. Países diferentes têm preferências diferentes. Mas todos os países da UE têm em comum uma ideia bem vincada da existência de uma esfera pública.
Liberté, égalité, fraternité não é claramente a divisa da China ou do Brasil. Uma das características da globalização financeira tem sido um aumento na desigualdade dos rendimentos do trabalho. Outra foi um renascimento dos regimes autoritários. Muitos dos países emergentes têm evitado o modelo económico social-democrata europeu a favor de um capitalismo transacional, financeiro, ao estilo norte--americano.
A maioria dos europeus ainda desfruta de um elevado grau de serviços de proteção social, educação e saúde gratuitos no momento da utilização. A UE conseguiu, mais ou menos, manter a maior parte deles. Mas não foi capaz de se tornar um modelo para o mundo.
Na última década do século XVIII não foi assim. A Revolução Francesa tornou-se o momento determinante na história do Ocidente, porque o progresso intelectual e económico na altura dependia crucialmente de uma mudança de valores. Teria sido impossível sustentar a revolução industrial no século XIX com o autoritarismo do século XVIII. Os valores da Revolução Francesa acabaram por entrar nos sistemas políticos e legais de quase todos os países europeus, incluindo o Reino Unido, onde o escritor Thomas Paine estabeleceu o princípio dos direitos inalienáveis. Estas ideias influenciaram muitas reformas políticas, começando no Reino Unido com a Lei da Representação Popular de 1832. Elas sustentam também a Carta dos Direitos Fundamentais da UE.
Então se, tal como eu, se desconfiar dos muito exagerados e inverosímeis argumentos económicas apresentados pela campanha pela permanência, deve-se considerar uma linha alternativa de raciocínio: os nossos valores estão sob a ameaça de pessoas como o presidente russo, Vladimir Putin, Donald Trump se for eleito presidente dos Estados Unidos e fanáticos em todos os lugares. Eles estão sob ameaça de companhias globais que evitam o pagamento de impostos e de países que não respeitam os acordos sobre o clima.
O argumento dos valores não pretende ter um sentido puramente defensivo. Não é apenas a proteção dos valores que importa, mas também a sua projeção global. A UE tem tido sucessos. A sua política em relação à vizinhança direta está longe de ser perfeita, mas a sua abordagem com o uso do poder de persuasão tem ajudado a transição democrática e o desenvolvimento económico em muitos países da Europa Central e de Leste. Quando a Rússia anexou a Crimeia, a UE conseguiu impor sanções e, provavelmente, irá renová-las. Se, ou melhor, quando a economia russa entrar em colapso, o efeito cumulativo dessas sanções terá desem- penhado um papel.
É uma pena que a campanha pela permanência tenha perdido tanto tempo concentrada nos benefícios económicos da adesão à UE. A UE é, naturalmente, uma construção económica. Mas fazer parte da UE não tem fundamentalmente que ver com economia. Tem que ver com o nosso modo de vida.
Wolfgang Münchau in dn.pt