Ramadão em viagem

Pára tudo. São seis e meia da tarde. Eis o sinal - a voz do muezzin a avisar, finalmente: após umas catorze horas de jejum, mais coisa menos coisa, é a hora do desjejum. As ruas ficam vazias. Em casa, a mesa começou a ser posta uma hora antes, devagar, para ter com que entreter o tempo de espera. A ementa varia, entre casas mais burguesas e citadinas e as famílias do campo. Mas geralmente começa-se com tâmaras, depois o pão, azeite, compotas, bolos fritos e passados por mel, que acompanham a harira árabe, o askif berbere - a sopa substancial que é presença constante nestas refeições de Ramadão. Chá, café com leite ou batidos de fruta com leite. E água - por onde eu começo, e por onde a maioria das pessoas com quem tenho estado termina. Depois espera-se duas ou três horas, a tentar desfazer o festim, e vem o jantar, uma refeição de tajine ou outro prato costumeiro.
Quatro da manhã: é a hora da última refeição. Ou seja, depois de se jantar vai-se dormir e, às três e meia, quatro horas, levantamo-nos para a última refeição antes do nascer do sol. Acordar às quatro da manhã para comer um resto de galinha assada, ou espetadas, ou apenas mais pão e mais chá, e depois voltar a correr para a cama - aí está uma ideia que nunca me tinha ocorrido.
Não se espera de um estrangeiro que cumpra o jejum, mas eu, há uns oito anos e durante uma estadia prolongada em Marrocos, quis experimentar. Call me crazy. Só nos últimos dois dias cumpri à risca. Nos outros, ainda que não comesse nada, bebia água assim que dava por mim a mastigar a língua como um pedaço de carne seca. Curiosamente, não comer não me custou tanto quanto a princípio pensei. Nos primeiros dias era mais difícil; dava por mim a ter pensamentos como "ah, já só faltam seis horas!..." Mas a partir de certa altura a fome não se sente, fisicamente. Claro que eu não faço trabalho físico e posso, se me apetecer, não me mexer todo o dia para poupar energias. Não imagino como aguentam as pessoas que trabalham nas obras, ou nos campos - sei que em parte essas têm dispensa, tal como os doentes e as mulheres grávidas e as crianças. Não consigo, muito menos, imaginar como será o Ramadão no pico do Verão, com mais calor e mais horas de dia (o meu mini–Ramadão foi feito no início de Outubro). O que estranhei mais foi ver o meu dia transformado num bloco indivisível, sem as refeições a organizarem a manhã, a tarde, o fim do dia.
Algumas pessoas perguntavam-me se estava a jejuar - desde amigos a empregados de loja que nunca me tinham visto antes. Surpreendiam-se quando eu dizia que sim, por vezes com expressões de aprovação, por vezes dando-se ao trabalho de me explicarem que eu não tinha de jejuar, por vezes limitando-se a rir de mim. E comentam comigo: É difícil. O corpo habitua-se. Tenho a barriga cheia de ar. Já só faltam cinco dias. Suspiros. O jejum é levado a sério, mas com queixumes. Os cafés estão fechados, excepto em cidades turísticas como Marraquexe, onde alguns europeus, felizes e alheados, bebem sumos de fruta e comem baguetes com manteiga nas esplanadas. As lojas estão abertas, mas com fôlego curto. E à hora sagrada do desjejum, tudo desaparece. Num cibercafé, o empregado explica pacientemente a uma cliente americana incrédula que são seis horas e vai ter de fechar até às sete e meia. "Mas eu preciso de enviar estas fotografias", insiste ela. "Sim, mas estamos no Ramadão..." Depois do desjejum (o ftór), esse momento alto do dia, as ruas enchem-se, como se fosse dia de festa, pela noite dentro. É a desforra.
No penúltimo dia do Ramadão tive um desjejum especial. Tinha ficado na cidade de Azilal até mais tarde e já não consegui táxi para regressar ao vale de Ait Bouguemez. Por sorte, cruzei-me com um rapaz do vale, o Hassan, que estuda no liceu da cidade. Disse-me que esperasse um pouco, porque ia haver uma transit para o vale. Fiquei com ele e uns colegas até quase às cinco da tarde. Foi quando chegou a carrinha que percebi que o transporte ia levar apenas alunos do liceu - e eu. O Hassan entrou a correr lá para dentro, pela porta de trás, e arranjou-me um lugar ao lado dele. A carrinha tinha uns 14 lugares e levava, pelas minhas contas, 24 pessoas. O ambiente era o de uma excursão da escola, mas com menos espaço e muita fome. Até sairmos da cidade, toda a gente foi lá dentro, por causa da polícia. Dois quilómetros depois, já a salvo, uma meia dúzia de rapazes subiu para o tejadilho. Ainda foram dois ou três de pé lá dentro, curvados para não baterem com a cabeça no tecto, os troncos a pender para cima dos que iam sentados. Até chegarmos ao destino seriam quase duas horas pelas estradas sinuosas das montanhas do Atlas.
O Hassan está a postos, de relógio na mão. Faltam quarenta minutos. Do seu cantinho na última fila junto à janela, grita com uma voz bem cheia até ao motorista, dá piparotes na cabeça do rapaz da frente. É um miúdo bonito, com um ar meio selvagem que impressiona de imediato mas que demoramos algum tempo a reconhecer como sendo beleza. E depois ficamos presos nela. Os olhos são grandes e amendoados, com qualquer coisa de feminino; o sorriso é brilhante e já consciente do seu poder; a cara, suave, e parece que toda a vida vai ter ar de criança ou rapazinho. De resto, é um rufia, nos gestos e voz de comando, a guardar renhidamente o seu espaço apesar das insistências dos colegas para que se aperte um pouco (e a dizer-me em tom firme, do alto dos seus talvez quinze anos: "Tu não te mexas, não saias do teu lugar!" - não fosse eu ter pena dos infelizes que viajavam de pé).
Faltam trinta minutos. A meio do percurso começa a chover, e os rapazes do tejadilho voltam para dentro, gelados. A transit vai a abarrotar, e cheia de rapazes e raparigas a rebentar de hormonas, e a falar, a falar, a falar.
Faltam 20 minutos. O meu relógio marca menos três minutos, o que deixa o Hassan preocupado. Os rapazes da frente começam a meter conversa, a querer saber onde moro, como se diz isto ou aquilo em inglês. O Hassan, alheado momentaneamente do mundo à sua volta e muito sério, pergunta-me se não tenho um livro para ele ler. É a primeira vez que vejo alguém do vale pegar num livro, excepto as leituras obrigatórias para a escola. Lê o prefácio lentamente, pedindo-me que lhe explique uma série de coisas. Depois, como se voltasse à realidade, à fome e ao ambiente excursionista, dobra o livro num tubo e com ele dá mais um piparote na cabeça do rapaz da frente. Faltam quinze minutos. Eu, que não contava estar em viagem àquela hora, tinha por acaso comprado um quilo de bananas pequenas.
Faltam oito minutos!, grita-se. Há quem já abra as mochilas e fique com a mão parada lá dentro, à espera, a tactear. Lá da frente, dos lugares ao lado do motorista, vem o aviso: quando for a hora, acendem a luz. Faltam três minutos! O Hassan grita pela Fatima, que nem se vira.
A lâmpada acende-se! O Hassan levanta-se de um salto, debruça-se para a frente e grita pela Khadija, e no instante seguinte senta-se com uma triunfante mão cheia de tâmaras, que reparte comigo. Eu devia ter-me lembrado de como ia ser a fome de um dia inteiro num grupo de adolescentes todos juntos em viagem. Tiro o meu cacho de bananas e faço-o passar. Desaparece num minuto. O Hassan vai-me fazendo chegar às mãos coisas que eu mal vejo, na penumbra do final de dia, entre inúmeras mãos e braços, e que identifico pelo tacto. Mais tâmaras. Um biscoito. Uma maçã. Iogurte líquido, já quase no fim e vindo sabe-se lá de quantas bocas esfomeadas. Inclino-me para trás para beber o resto e bato com a embalagem em alguém que viaja debruçado por cima de mim. O garrafão da água já está vazio quando chega cá atrás. Já em escuridão total, o Hassan acende uma lanterna de porta-chaves e vejo-o segurar um pedaço de romã, retirando cuidadosamente os grãos que restam, como nas imagens que a TV nos traz, com os refugiados a raspar o fundo da tigela - grãos de um vermelho quase psicadélico àquela luz esverdeada, sobre o branco da casca.
Eu ansiava pela festa do fim do Ramadão. Via carneiros a serem degolados, roupas de festa, música, dança. Fui confrontada com a realidade. Na casa onde estava, na aldeia, no primeiro dia de festa, para o pequeno-almoço, além do chá e do pão habituais havia arroz cozido em leite. Durante toda a manhã, apareceram pessoas de família e amigos a saudarem-se e a tomar um chá e uma conversa. O almoço foi uma tajine, como nos outros dias. À tarde, a modorra do dia cinzento foi interrompida por gritos da aldeia em frente, onde uma botija de gás tinha provocado um incêndio, sem vítimas mas com toda a roupa da família feita em cinzas. Corremos para lá, seguindo o exemplo de todos os outros, mas, quando cheguei, com uma criança de três anos a tiracolo a abrandar-me a marcha, já tudo retomara a ordem normal, e os habitantes de ambas as aldeias aproveitavam a reunião inesperada para se saudarem também e porem a conversa em dia. Estarem ali, todos juntos: eis a festa. E eu com eles.

Bilhete-postal enviado por Ana Gomes in viagens.sapo.pt