Um mundo arriscado (Teoria da Guerra)

O fracasso das antigamente chamadas teorias matemáticas da guerra resulta precisamente da insuficiente atenção prestada ao elemento moral, que introduz factores de indeterminação que aumentam o risco.
Cada um tem certamente os seus critérios particulares para se orientar em política, para lá daqueles que, muito curiosamente, e se calhar a questão merecia ser desenvolvida, decalcam quase directamente o esquema da orientação corporal, como esquerda/direita, abaixo/acima (democracia e aristocracia, etc.) e à frente/atrás (progressismo e reaccionarismo). Um critério tão bom como qualquer outro é o da atenção à relação que as concepções políticas mantêm com o problema do risco. Porque há concepções da sociedade que o minimizam e outras que lhe prestam uma mais devida atenção. E é possível (pessoalmente, acho muito aconselhável) preferir a segunda atitude à primeira.
Vendo bem, o risco encontra-se politicamente em todo o lado. Uma pequena recapitulação de algumas ideias é talvez bem-vinda. O risco encontra-se muito obviamente, por exemplo, nas relações internacionais, e o nosso tempo ilustra bem isso, como qualquer outro tempo. Uma coisa é segura: os compromissos obtidos são sempre obtidos contra um fundo de precariedade e incerteza. Há sempre algo de aventuroso em qualquer decisão nesta esfera, onde a própria inacção é arriscada. O que fará o outro? Obedecerá ele a um plano bem definido ou limitar-se-á a decidir em função da nossa reacção? Quando a conduta do outro é imprevisível, o risco certamente aumenta, e aumenta ainda mais quando somos obrigados a improvisar. Pode-se, e deve-se, é certo, calcular, mas o cálculo não elimina o risco.
Mais patente ainda, se possível, é o risco na guerra propriamente dita, algo que os mais eminentes teóricos na matéria não deixaram nunca de sublinhar. O fracasso das antigamente chamadas teorias matemáticas da guerra resulta precisamente da insuficiente atenção prestada ao elemento moral (o moral das tropas), que introduz factores de indeterminação que aumentam o risco. O génio militar, tal como classicamente definido, é aquele que melhor convive com estes factores. Mas o génio militar não é obviamente infalível. O cálculo sobre a intenção do outro, a reconstrução imaginativa do que se passa no seu espírito, faz-se também aqui num contexto de incerteza. E é essa mesma incerteza, de resto, que devemos incutir no adversário, para que ele próprio hesite.
Na guerra do amor, tal como a pensaram certos clássicos da libertinagem do século XVIII, a coisa não se passa de maneira substancialmente diferente. Nenhum cálculo, por mais matemático que se pretenda, por mais que o “olhar sem constrangimento”, o “olhar frio”, procure voar acima da confusão que a paixão provoca, permite a certeza da vitória. Pelo contrário, o risco permanece grande e o resultado pode bem revelar-se catastrófico. Os princípios libertinos (e o libertino rege-se por princípios estritos) não podem nunca, dada a natureza humana, garantir sucesso algum. A racionalidade tem aqui os seus limites. Procurando, a bem da sedução, e como na guerra, fazer o outro perder o equilíbrio e hesitar, o libertino arrisca-se ele próprio a ver-se enredado em considerações que se destroem umas às outras e que o farão por sua vez cair. A possibilidade da perda dos princípios, e a ameaça do amor, do ridículo do amor que é a bête noire do libertino, está sempre presente.
Passando agora para a política propriamente dita, o que pode o político fazer daquilo que não depende dele, da incerteza e do risco que o rodeiam e que formam a paisagem na qual as suas decisões têm lugar? Pode, sem dúvida, procurar modificar as circunstâncias em seu favor. Pode, como lembrou um autor célebre, ser generoso quando tal lhe é benéfico, cruel quando for necessário, mentir se a isso as condições o obrigam e saber acertar na ocasião certa para agir, para dar a forma que mais lhe convém à realidade com a qual se confronta. Sobretudo, tal como o libertino, deve ser ousado (como coisa distinta de temerário). Mas, mesmo que possua essa soma excepcional de virtudes políticas, a larga fatia de coisas que não dependem dele pode muito bem levá-lo ao fracasso. O risco não é eliminável. A acção, o lançar dos dados, não abolirá jamais o acaso.
Esta rápida visita a algumas ideias que a tradição nos legou no que diz respeito ao risco mostra que mesmo os mais atentos à efectividade deste e à necessidade de o dominar reconheceram que ele não é nunca eliminável. Mas ele aumenta exponencialmente, é claro, se nenhuma atenção lhe é prestada. Ora, uma das formas mais vulgares de não prestar atenção ao risco é aquela que consiste em confiar cegamente na mágica eficácia das nossas ideias sobre a realidade, em crer que um plano perfeito e muito certinho conduz sem desvios à justiça e à felicidade. Sabemos no que isso dá. Aí, o fracasso não é apenas uma possibilidade sempre verosímil. É mesmo uma certeza absoluta. Substituindo ao corpo-a-corpo com a realidade, com aquilo que nos põe em causa, um mundo imaginário despido de atritos e supostamente dotado de uma eficácia prática à prova de bala, o que resulta é fatalmente a catástrofe.
Por isso, a atenção ao risco é de longe preferível, e, somando tudo, um bom critério de orientação política. Não que o risco possa ser eliminado: obviamente não pode. Mas pode, de alguma maneira, ser objectivado, e, como tal, relativamente controlado. Não temos medidas precisas, rigor matemático, em matéria política. Mas convém, mesmo assim, e tal é possível, garantir algum espaço para o cálculo e a deliberação. A temerária desatenção ao risco retira esse espaço todo. Põe-nos inteiramente à mercê dos outros. O mundo é já de si arriscado. Não convém, por ideologia, torná-lo ainda pior. Parece algo a ter em conta quando se elege alguém para nos governar. Porque alguns têm, por princípio, essa atenção, e outros, por princípio, não. Quando tudo parece improvisação, é sinal claro que não a têm.
Paulo Tunhas in observador.pt