Não é fácil ser ético

Não é fácil ser ético. Parece, mas não é. A maior parte das pessoas refere a boa educação, a cultura, um bom berço, no qual se tenha recebido os princípios que nos vão guiar ao longo da vida. E, de facto, isso ajuda. É mesmo a base, mas não chega para resolver as questões da nossa vida de todos os dias, seja ela profissional ou pessoal.
Em 2014, no final do ano, pedi ao meus alunos do IST que escrevessem os seus compromissos éticos, enquanto profissionais. O que alguns deles escreveram comprova o que acabei de referir: “tenho a total certeza que, se ao longo da minha vida seguir os valores transmitidos pelos meus pais, serei feliz, terei a consciência limpa e nunca passarei uma noite mal dormida por remorso ou culpa”.
De um ponto de vista empresarial, a questão também parece simples. No final da maioria dos códigos de ética ou conduta, há um conjunto de perguntas do tipo: “Está de acordo com a lei?”, “Está de acordo com as regras da empresa?”, “Sentir-se-ia confortável se se soubesse da sua acção?”, ou até “Gostaria que lhe fizessem isso a si?”. E, se formos respondendo que sim a todas excepto à última, parece que também por aí poderemos ter uma vida feliz e descansada.
Mas a questão, o que torna verdadeiramente difícil ser ético e o que, por vezes, retira utilidade aos ensinamentos que recebemos, aos códigos e às check lists, é que nós não ‘vemos’ as questões éticas e, por isso, não temos dúvidas nem pomos em prática tudo aquilo que nos ensinaram. Se nós ‘víssemos’ as questões éticas, utilizaríamos as ferramentas que nos poderiam eventualmente ajudar a resolvê-las.
Uma das razões porque não vemos as questões éticas, é porque elas não vêm assinaladas (seria tão bom se viessem assinaladas com uma bandeirinha) e todos temos, de alguma forma, uma percepção limitada da realidade. É o que observamos que nos faz agir de determinada forma, e essa visão é, por vezes, oposta àquela que tem a pessoa com quem estamos a falar e que é tão bem intencionada como nós.
Para além disso, as situações com que nos deparamos são sempre (por vezes vertiginosamente) novas, como dizia Heraclito, filósofo pré-socrático, explicando o “Devir”: “ninguém pode entrar duas vezes no mesmo rio, pois quando nele se entra novamente, não se encontram as mesmas águas, e o próprio ser já se modificou.”
E na ética também é assim, seja na vida pessoal seja na profissional, há sempre, potencialmente, um conjunto de variáveis que não tínhamos pensado, com que nunca nos tínhamos deparado.
Se a vida fosse como uma viagem de comboio, sobre uns carris, com algumas poucas mudanças de agulhas, não haveria qualquer razão para que, seguindo os códigos ou os ensinamentos que nos foram transmitidos em casa, não tivéssemos garantida a paz de que precisamos para tomar, sem dúvidas, as decisões que tomamos, para estarmos seguros de não termos ‘noites mal dormidas’. Mas, a verdade é que a vida não é assim. Ela assemelha-se mais a uma viagem de veleiro do que a uma viagem de comboio.
Na vida, sobretudo na vida profissional, é-nos exigido conhecimento – e isto, claro, é uma coisa complicada, porque é preciso conhecer os ventos e as marés, o funcionamento da máquina e de todos os procedimentos necessários para nos capacitarmos a ter a decisão adequada nas situações padrão, e até em algumas fora do padrão, que possam ser previsíveis. O que não nos podemos esquecer é que há muitas outras situações impossíveis de prever.
Num veleiro, tal como na procura de uma actuação ética, as situações, mais do que complicadas, são muitas vezes complexas, o que significa que não poderemos prever todas as variáveis. Não sabemos. Isso é válido para muitas situações da vida profissional, não só a ética – ou, dito de outra forma, a ética não é diferente.
Há uma modéstia e uma humildade necessárias para uma conduta ética: a consciência ou a aceitação de que o nosso ponto de vista não é o único e que, de facto, não sabemos tudo, nem o nosso olhar abarca todas as visões possíveis sobre um assunto. É preciso ser prudente.
No seu livro “Not Knowing”, distinguido com o prémio Managent Book of the Year em 2015 no Reino Unido, Steven D’Souza refere que um mestre de xadrez consegue prever dez a 15 movimentos. Isto leva-o a perguntar-se “como é que um gestor de risco prevê de forma rigorosa os movimentos de mercados, em que milhões de actores individuais fazem milhões de escolhas, entrecruzadas, racionais e irracionais”. Estamos no puro campo da complexidade, que é onde se enquadra a ética.
Foi aparentemente dessa índole da ética (”Manager dans (et avec) la Complexité”, EyRolles 2017) a falha que ocorreu e que esteve na origem do acidente com a nave Challenger, em 1986. Ao fim de longas pesquisas para tentar identificar a falha técnica que esteve na origem do acidente, concluiu-se que foi a incapacidade dos técnicos que detectaram o erro fazerem ouvir a sua voz junto das pessoas que o podiam resolver. Ou seja, a falha não foi mecânica nem complicada, mas antes no âmbito das relações humanas; foi uma falha complexa, uma questão de hierarquia, um aspecto que é apontado nos assessments de risco ético, como o do Makula Center, como um dos maiores potenciadores de risco.
A ética não é fácil, pelo menos as grandes questões da ética, e quando digo grandes questões não me refiro a corrupção e suborno. Estou a falar, por exemplo, em questões como: quem despedir; deslocalizar ou não deslocalizar uma fábrica; contar ou não algo que é muito importante para a vida de um amigo, mas sobre o qual prometemos confidencialidade… Pascal, filosofo francês, dizia que “la vraie ethique se moque de l’éthique” (a verdadeira ética goza com a ética).
Como refere Stephen Denning (”A Fable of Leadership Through Storytelling”) é preciso assumir que “as regras não são o último patamar do conhecimento, são apenas o primeiro”. Úteis para coisas simples – “diz a verdade”, “cumpre as tuas promessas” – mas de pouca utilidade em situações dilemáticas, como ser honesto ou leal no interior das empresas.
Temos que escolher e, de algum modo (e é por isso que não é fácil), a ética comporta a angústia da escolha da qual não nos podemos demitir. Tem de partir de um desejo de ser ético, da defesa de um ideal e depois, face às diferentes possibilidades que a vida nos oferece, a pessoa “vê, atende e opta”, como referia Leonardo Coimbra, em 1918. Esse era, para ele, o verdadeiro momento ético.
Ou seja, se queremos verdadeiramente ser éticos ou, na nossa posição de gestores, promover comportamentos éticos, temos de falar mais sobre o tema, deixar espaço, novas perspectivas e pontos de vista e aumentar a nossa visão desta realidade.
Temos também de ajudar no “atender” de que fala Leonardo Coimbra, no raciocínio, na forma de pôr as questões, e de promover um raciocínio critico, mostrar que pode haver um largo espectro de aspectos a ter em conta numa decisão. Temos de promover o diálogo e o debate sobre as questões.
Quanto à opção, ela é solitária e sim, muitas vezes difícil. Pertence a cada um de nós. Porque só existe ética em liberdade.
Ana Roque in www.ver.pt