Responsabilidade: o presente que antecipa o futuro da acção humana

Após a identificação das transformações susceptíveis de explicar as novas vagas de preocupações éticas, bem como os fundamentos para renovados valores éticos que interagem com as necessidades humanas, será necessário considerar a reflexão ética de forma tão premente quanto problemática, se se entender que esta é a ultima justificação para a procura de novos valores. 
Os valores éticos do nosso tempo suscitam uma observação paradoxal. Se por um lado a evolução tecnológica assenta em modelos de crescimento numa base de quantificação que transforma as necessidades humanas em necessidades de objectos, não é menos verdade que matérias do foro da intimidade, como a saúde, a liberdade ou a amizade, são bens não comercializáveis, portanto, não quantificáveis, e que levam o homem a prosseguir os seus próprios fins. É nesta conexão que encontramos a carência ética que destaca a instrumentalização dos meios técnicos sem atender ao peso dos fins humanos. Sendo certo que os valores éticos nunca farão parte de uma lógica de acumulação, esta certeza suscita o seu ressurgimento e reinscreve-os no contexto universal. Valores como a amizade ou felicidade, não são atributos exclusivos de alguns homens, mas fazem parte da condição de relacionamento humano. Nesse sentido potenciam outras abordagens éticas, geradas a partir de novas convicções. As múltiplas questões que constituem o cerne dos discursos, incluindo os discursos políticos com lugar na actualidade, estruturam-se em torno da abundância de bens, da natureza desses bens e sua utilidade para o homem, tema que envolve a absoluta validação de crescimento dos processos de produção. Contudo, matérias relacionadas com a redistribuição de bens, socialização através de actos de consumo ou mesmo as consequências ambientais provocadas pelos sucessivos incrementos de produção, são matérias em relação às quais tanto os discursos oficiais, como a sociedade civil optam pela máxima descrição. Uma abordagem sobre a ideia de responsabilidade na qual novos domínios, designadamente do saber, correspondam a novas responsabilidades, é uma ideia que constitui o lugar privilegiado para uma transformação ao nível das convicções. Conceptualmente, a responsabilidade tem assumido um carácter jurídico, no sentido da imputabilidade da prática de um acto determinado a um agente específico. Neste contexto jurídico, a responsabilidade fará sempre parte de uma realidade localizada no momento da acção, e o momento em que se afirma a imputação do sujeito da acção difere em relação à sua prática, ou seja, a imputabilidade inscreve-se no passado e a sua deliberação ocorre no presente. Mas, ao carácter jurídico da responsabilização acresce ainda uma outra característica conceptualmente relevante: o sujeito da acção, ao ser juridicamente responsabilizado, repõe o dano causado pela sua acção. Neste sentido, a responsabilização jurídica determina, tendencialmente, o fim da responsabilidade perante a lei, e, entendendose a lei como a disposição regulamentar de regras sociais, tal significará o fim da responsabilidade, e portanto, a cessação do dano causado pela acção praticada. Neste contexto, há ainda a distinguir a responsabilidade jurídica e a responsabilidade moral, sendo certo que a responsabilidade moral de uma qualquer acção plasma-se na responsabilidade jurídica, existindo por vezes uma interacção partilhada entre ambas que introduz alguma perturbação em matéria de deliberação jurídica. Ao serem criados os circunstancialismos necessários para que a tecnociência faça parte da contemporaneidade do discurso ético inicia-se um ponto sem regresso para a abordagem de um novo conceito de responsabilidade. É neste sentido que a ideia de responsabilidade começa a fazer um percurso em direcção ao futuro, questionando a acção que ocorre no presente, e cujas consequências se projectam no futuro, admitindo desta forma uma nova dimensão espácio-temporal para a qual “toda a compensação se torna insuficiente, pois os efeitos das minhas acções ultrapassam de tal modo a esfera imediata do meu agir que não há compensação que anule o acto praticado; ao invés, tenho primeiro de prever as consequências dos meus actos para com a alteridade (humana ou não) para, depois, subordinar o meu poder de realizá-los ao compromisso que com ela contraí”. Este novo sentido de responsabilidade assume uma disposição, segundo a qual se entende que é no presente, o lugar da acção, que se avaliam as consequências futuras da própria acção. Esta condição que se estabelece na era da tecnologia resulta de modificações do agir, cujo principal sentido consiste na tentativa de anular aspectos contidos numa negligência anterior, podendo também ser uma tentativa para a introdução de uma nova ordem moral. Trata-se de um novo sentido de responsabilidade que está para além do cumprimento de regras e que é portador de uma relação de confiança entendida sobre a égide de uma missão que nos é confiada no presente. Dirá P. Ricoeur que “a missão mais delicada que pode ser confiada a um agente que se declara responsável pelo futuro é a protecção de qualquer realidade frágil e perecível”. A nova perspectiva de abordagem da responsabilidade pressupõe um conceito de humanidade, na qual o horizonte da existência futura depende estritamente das acções previstas no presente. Em causa está garantir a continuidade da humanidade. Poderá este novo entendimento de responsabilidade representar uma nova era do dever? Esta contextualização da responsabilidade é uma necessidade desencadeada pela alteração da acção humana, cujo âmbito de intervenção está para além do individuo, centrando-se na humanidade. “Age de tal forma que exista ainda uma humanidade depois de ti e pelo maior tempo possível”.  C. Beckert comentando Hans Jonas afirma que este “autor começa por descrever a ética clássica como essencialmente antropocêntrica, isto é, dizendo respeito à relação homemhomem no interior da polis”. Contudo, perante a exigência de “uma nova aliança entre a ética e a ciência em que a dimensão cognitiva toma uma importância fundamental (…) entre o poder de transformação inerente à técnica, por um lado, e o poder de previsão de ordem científica, por outro, (…) constitui-se (…) o objecto nuclear da responsabilidade ética”. A tecnociência tem como efeito o descentramento do antropocentrismo ético para uma ética da responsabilidade, que contém desde logo a perspectiva de alteração da relação homem- natureza. A humanidade é o focus do discurso onde se delibera a orientação que possibilita a sua continuidade. 
Carmen Maria Nunes Carraça in repositorio.ul.pt