Afirmou recentemente que a resignação do Papa Bento XVI restaurou dignidade moral a uma Igreja em crise, no sentido de que com esse gesto o Papa mostrou que era um ser humano como qualquer outro, com as suas limitações. Como vê esta transição na Igreja católica?

Declarou que com as redes sociais, e a Internet, nos transformámos numa sociedade confessional, reflectindo sobre o que leva as pessoas a partilhar os seus sentimentos mais privados. Até que ponto é que isso reitera a sensação de que apenas existimos na medida em que o que fazemos é visto pelo Outro, quase como se fosse uma entidade divina?
Os confessionários enraizaram-se na cultura europeia como protótipo e paradigma da privacidade e da intimidade; ali se admitiam actos e pensamentos julgados impróprios para serem confiados a quem quer que fosse além de Deus. Tais actos e pensamentos tão profundamente privados e íntimos são agora brandidos em público. Superficialmente, podemos opinar que isto significa apenas que encontrámos outros veículos técnicos para satisfazer a mesma necessidade humana de confessar e partilhar emoções e crenças. Mas de facto o próprio significado dessa conduta mudou tanto que o confessionalismo se tornou irreconhecível. O Facebook é agora um mercado, onde pessoas preocupadas com o seu valor de mercado usam a intimidade e o seu potencial de entretenimento para aumentar esse valor. Talvez entre os milhões de utilizadores alguém, algures, considere a mercadoria que ali é oferecida digna de atenção, atraente, capaz de suscitar procura e de assegurar sucesso comercial num mercado sobrelotado de informação. O sucesso da ideia de Mark Zuckerberg deveu-se à procura de mercadorias como a terrível sensação de abandono, a solidão incurável, o risco de se ser abandonado, ou expulso, têm no mercado global. Algumas histórias dos blogues, do Twitter ou do Facebook são, por assim dizer, o sucedâneo para algumas camadas da população das revistas de celebridades.
Ao mesmo tempo existe a sensação de que as redes sociais são ferramentas ainda recentes, ou seja, um laboratório que ainda estamos a experimentar. Apesar de tudo, sabemos ainda pouco sobre as redes sociais e sobre as suas consequências nas nossas vidas, não lhe parece?
Nós – todos nós – vivemos em dois mundos diferentes, online e offline. Cada um deles tem as suas próprias regras e os seus próprios padrões. Graças ao Facebook, a versão online de iniciar e romper uma amizade tornou-se fácil, rápida e despida de todos os difíceis e morosos compromissos, testes e sacrifícios que sobrecarregam a sua versão offline. Não admira que seja um atractivo para tantas pessoas. Mas o preço a pagar por esta facilidade é alto: o desvanecimento, ou a mesmo a perda, das competências sociais necessárias para garantir e perpetuar a amizade na vida offline. Portanto, e em última instância, é uma perda ou um ganho? Os amigos online são muito mais numerosos, mas são fiáveis? A sabedoria popular inglesa insiste que “a friend in need is a friend indeed” [“Os amigos são para as ocasiões”, numa tradução muito livre]. Os amigos do Facebook provarão ser “verdadeiros amigos” num momento de necessidade? Serão eles capazes de nos proteger contra os caprichos do destino, como é suposto os amigos offline fazerem? Tenho dúvidas.
Mudando de assunto. Na Europa parecem coexistir duas dinâmicas de protesto paralelas. Por um lado, temos pessoas a reclamar mudanças urgentes, porque a sua sobrevivência está em causa (é o que se está a passar em países como Portugal, Espanha, Itália ou Grécia). Acaba por ser um protesto emocional. Por outro, exigem-se transformações estruturais profundas, que requerem reflexão mais rigorosa. Como é possível gerir estas duas dinâmicas entre pessoas, sociedades e países?
São ambas manifestações de desencanto e de desagrado com o mau funcionamento desse difícil compromisso entre dois princípios que estruturam a União Europeia. Um é a ideia da soberania territorial do Estado consagrada no Tratado de Vestefália de 1648 (“cuius regio, eius religio”). Outro é a pura realidade do nosso mundo globalizado, no qual os poderes que determinam os nossos padecimentos – no que diz respeito às nossas expectativas e às expectativas dos nossos filhos – estão completamente fora do alcance das instituições políticas disponíveis e, portanto, fora do nosso alcance (os poderes, no sentido da capacidade de fazer as coisas, tornaram-se globais, enquanto a política, ou seja, a capacidade de decidir quais dessas coisas devem ser feitas, mantém-se local, como antigamente, confinada às fronteiras do “Estado soberano”). Resultado? Os Estados, que têm nominalmente o território integralmente a seu cargo, estão a sofrer um constante défice de poder, o que os impede de cumprirem a sua promessa (hoje são as bolsas de valores, não os gabinetes dos ministérios, que definem a linha entre as políticas “realistas” e as políticas “irrealistas”). À conta disso, os governos ficam sem saída: têm de satisfazer as reivindicações dos seus eleitores, mas ao mesmo tempo têm de ganhar os favores dos poderes supranacionais, e as duas exigências são mutuamente incompatíveis. O resultado é o que descreveu! De acordo com os desejos dos seus eleitores, a senhora Merkel quer uma reforma que torna a Europa mais hospitaleira para o capital financeiro à escala planetária. Grécia, Itália, Espanha ou Portugal querem constranger os poderes dos capitais globais para proteger a vontade soberana das suas nações. Como é possível “gerir estas duas dinâmicas”? Bem, estamos condenados a consagrar o futuro mais próximo aos esforços para encontrar – ou criar – uma resposta eficaz para a questão.
Para além da Europa, assistimos hoje à ascensão de novos poderes como a China, a Índia ou o Brasil, onde o capital parece circular mais intensamente. Mas a questão é se não estarão a fazê-lo replicando um modelo desenvolvido na Europa e nos EUA que parece estar a mostrar sinais de erosão.
Tem razão mais uma vez. Eles estão de facto a entrar no jogo inventado e disputado pelo capitalismo, em si uma invenção ocidental; e é de acordo com procedimentos capitalistas, essencialmente parasitários, que depois de praticamente esgotada e extinta a vitalidade dos seus hospedeiros mais antigos se alimentam agora de novas “terras virgens” ainda por depauperar, prometendo-lhes altos lucros no curto prazo. Toda essa deslocalização das finanças planetárias esconde, porém, a grande questão dos “limites naturais” da sustentabilidade do planeta. Estamos já a consumir um planeta e meio, ou seja, consumimos 50% a mais do que o nosso planeta, a nossa casa comum, é capaz de fornecer sem comprometer a capacidade de auto-regeneração. Se a China, a Índia, o Brasil e outros países que seguem o seu exemplo conseguirem atingir o nível de consumo que já se pratica no Ocidente, passarão a ser necessários cinco planetas para satisfazer a procura global. Só que isso não é uma possibilidade. Temos, portanto, duas hipóteses, e duas apenas: uma é entrarmos numa era de guerras de redistribuição, de alimentos e de outros recursos indispensáveis para sustentar o modo de vida de uma sociedade consumista; a outra é reformarmos o nosso estilo de vida. Apesar de tudo, há mais do que uma maneira de viver uma vida feliz, gratificante e digna.
Parece não existir um grande horizonte de esperança para esta Europa que tem vindo a ser construída. Depois da queda do Muro de Berlim, passámos a confiar no capitalismo global e no progresso tecnológico e não nos demos ao trabalho de pensar em alternativas. Parece-lhe que os traumas deixados pelo fascismo e pelo comunismo foram a principal razão que conduziu a esta ausência de um pensamento alternativo?
Não iria ao ponto de dizer que não há esperança para a Europa. A história é feita por seres humanos, e esse é um dos poucos aspectos da nossa existência que é tão imortal como a própria humanidade. E há muitas maneiras de ser humano, tal como há muitas formas alternativas de gerir a vida perseguindo objectivos como a dignidade, a satisfação e a felicidade, formas que não passem pela rivalidade, pela competição de cortar à faca, pelo “crescimento económico” incessante, pela expansão do consumo e consequente esgotamento dos recursos do planeta que se tornaram dominantes no presente. O facto de termos falhado [nessa missão de] encontrar, aceitar, abraçar e praticar estilos de vida alternativos não é de todo resultado dos “traumas deixados pelo fascismo e pelo comunismo”. É uma escolha política, social e cultural, e podemos reverter as nossas escolhas – tanto quanto podemos agarrar-nos a elas.
Em algumas das suas obras mais populares, como Amor Líquido, aborda as relações afectivas e a forma como se têm transformado nestes tempos difusos. É como se também nas relações de afecto estivéssemos condenados ao curto prazo, como se a durabilidade das relações amorosas nos assustasse.
O nosso desejo por uma mercadoria aumenta em função da sua escassez. A fome de amor tende a ser hoje cada vez mais difícil de saciar, porque o culto moderno do conforto e da facilidade, que faz o esforço ser redundante e o trabalho árduo ser repulsivo, torna as alegrias do amor terrivelmente inacessíveis. No fim de contas, o amor desvela todo o seu encanto quando consiste em viver para o outro. O amor é a chave da felicidade, desde que aceitemos que não se trata de uma receita para uma vida fácil e para o conforto pessoal.
Nos últimos anos muito se falou sobre o possível fracasso do papel dos intelectuais nas sociedades contemporâneas, ou pelo menos da sua transfiguração. Como vê esse tema à luz da sua própria experiência?
O papel tradicional dos intelectuais, que consistia em assumir a responsabilidade pela defesa e pela promoção dos valores das nações, foi vítima dos mesmos processos que erodiram outros aspectos da comunidade humana: processos de fragmentação, individualização e privatização. As elites culturais educadas tendem actualmente a seguir outras elites, sobretudo económicas, na sua renúncia a quaisquer responsabilidades que não aquelas que dizem respeito a interesses puramente privados. Tal como tendem a recolher-se nos seus refúgios profissionais – os cirurgiões defendem os hospitais, os académicos defendem as universidades, os actores defendem os teatros, os artistas defendem as galerias –, deixando a cargo de poucos, se é que de alguns, as questões que estão acima dos seus interesses corporativos. Por outro lado, a crise das instâncias de acção colectiva existentes, associada a uma imaginação política rendida à lógica de curto prazo, degradou o valor das expectativas de uma “boa sociedade” e tornou redundante a reflexão sobre a forma que esta devia assumir. A sua preocupação justifica-se totalmente, portanto. Mas não é o fim do mundo. Ainda não chegámos ao ponto de não-retorno. A procura de serviços intelectuais tem uma urgência sem precedentes e essa premência cresce de dia para dia.
Vitor Belanciano in publico.pt