A apologia da ciência e a inutilidade das artes e das humanidades - por João Paiva

1. Tenho mais de 30 anos dedicados à ciência, principalmente ao seu ensino e divulgação. Não me canso de sublinhar o fascínio pela forma científica de questionar, conjeturar, observar, experimentar, teorizar e até prever o que se passa no mundo natural. São, resumidamente, duas as pérolas desta empresa científica: a) o sabor, o gozo, o prazer e o deleite de tatear a natureza; b) a potencialidade benfazeja que os conhecimentos científicos encerram, uma vez que, quando aplicados por meio do que chamamos tecnologia, podem beneficiar a humanidade. O aumento médio da esperança e da qualidade de vida, à escala global, é um bom exemplo que sentimos (infelizmente não todos...).
2. O poder que a ciência adquiriu é impressionante. E adivinha-se que assim continue a ser. As nações mais poderosas confundem-se com os países de maior arsenal científico e tecnológico. Este poder tem de ser questionado, para que não seja mal usado. A ciência atual, tenha ou não aplicações imediatas, está condenada a viver no contexto social, económico e político. A ciência pura, supondo que alguma vez existiu, morreu já há muito. As grandes avaliações e decisões nunca são só científicas. A ética, em particular, impõe-se de forma crucial à ciência. Trata-se do discernimento pessoal e coletivo face à grande questão: “o que devo fazer?”
3. A agenda da ciência contém a necessidade de autorreflexão. Vejamos três vetores apontados pela sociologia da ciência: reconciliação com a Terra, combate à pobreza, promoção da mulher. Muito tem sido feito. Mas, nas políticas científicas, o ambiente e a sustentabilidade ainda não são priorizados, o combate à pobreza não se reflete de forma consequente na distribuição de recursos de investigação à escala mundial e a mulher ainda não ocupa lugares de destaque nas instâncias de decisão empresarial, política, científica e tecnológica.
4. Aos futuros cientistas, costumo dizer que não haverá lugar na ciência para gente que só veja números, fórmulas e laboratórios. Aqui emergem as necessidades de competências transferíveis bem desenvolvidas, que façam dos cientistas pessoas capazes de trabalhar em grupo, de apresentar ideias, de esboçar projetos, de refletir sobre a ciência que protagonizam.
5. Como químico, sempre fui impelido para as misturas... Nós, químicos, focados na realidade atómico-molecular, passamos a vida a fazer análises e sínteses... As análises permitem-nos saber o que está e quanto está. As sínteses são muito relevantes: ligam, constroem, geram novos materiais e novas vidas. As ciências exatas estão carentes de sínteses. Temos de ter a consciência da artificialidade das disciplinas científicas, face à natureza que teima em ser uma só. Sim, separamos para analisar, mas, se perdemos a noção da floresta, lá ficamos míopes ao ver só a árvore.
6. Durante muito tempo, e também para conseguirem afirmação de estatuto na sociedade, as áreas do saber conotadas com as humanidades, como a história, a psicologia ou a sociologia, aproximaram-se das metodologias das ciências exatas e naturais. Também se usam, por exemplo, instrumentos e meios tecnológicos naquelas áreas.
7. Os docentes e investigadores universitários vivem um dilema: a sua carreira é dramaticamente competitiva. As exigências de financiamento não nos permitem desperdiçar oportunidades de projetos. Alguma burocracia, sem retaguarda de secretariados de apoio, subtrai-nos imenso tempo. A leitura e a escrita de artigos em grande número deixam muito pouco tempo para outras leituras. Mas o virar as costas às humanidades pode ser fatal para a ciência. E, portanto, quanto mais não seja pela ciência, teremos de ser criativos para reconhecer e valorizar o que somos e ao que vamos, numa perspetiva humanista. Estar conscientes de que a grande pergunta da ciência, nas palavras de Schrödinger, é também a grande pergunta do Homem: “quem somos nós?” Neste sentido, não cair na conta, por exemplo, das nossas raízes greco-latino-judaico-cristãs poderá ser suicidário. 
8. Estas reflexões deverão ter implicações na vida académica das escolas de ciência. As faculdades, incluindo as de ciências, têm obrigação de proporcionar aos seus alunos, aos seus docentes e investigadores espaços de reflexão transdisciplinar e de alargamento de horizontes culturais. A formação de professores de ciência deve contemplar mais profundamente a história e a filosofia da ciência e da civilização, a literatura e a arte, fazendo pontes com outros saberes. Talvez as avaliações curriculares das carreiras científicas possam valorizar mais a comunicação e inculturação da ciência, a par da análise das publicações científicas, que poderão ser sujeitas a um olhar mais focado na qualidade do que na quantidade. A universidade, na universalidade a que está chamada, está ainda muito cristalizada na disciplinação avulsa, oferecendo timidamente cursos de mistura humanista e multidisciplinar, que o nosso tempo reclama como urgentes. Abstenho-me de falar das óbvias consequências que todas estas ideias deveriam ter na atenção às humanidades nos ensinos básico e secundário (de pequenino se torce o pepino!). Sem prejuízo de, em simultâneo, na difícil metáfora de uma manta curta para a complexa cama curricular, se aumentar a intensidade da aprendizagem das ciências e da prática laboratorial, em particular.
9. Perceber-se-á agora melhor o título deste texto. Não coloquei aspas na palavra inutilidade. Queria agarrar o leitor, é certo, mas, mais ainda, sublinhar que é de inutilidades que é tecida a humanidade. A ciência, recuperando a sua humildade epistemológica, deve saber abrir-se às artes e humanidades. Um cientista sabe que a sua grelha é um dos instrumentos para se ler o mundo, mas nunca o único, nem o melhor. Sabemos que Kant, Tolstói ou Beethoven nos deliciaram e apontaram caminhos... e não tinham laboratórios. Benditos inúteis!
João Paiva in publico.pt