O contributo da filosofia para a formação geral no ensino secundário

A comunicação que preparámos para este Colóquio é um ensaio que tem por objectivo, num primeiro momento, dar resposta a esta questão geral: – Que pode a disciplina de Filosofia trazer de específico à formação geral da educação secundária? Ou, procurando ser ainda mais preciso: – Que pode a disciplina de Filosofia trazer de mais-valia à formação geral que outras disciplinas não estão (tão) habilitadas a trazer? A pergunta releva, em primeiro lugar, do princípio da especificidade científica e disciplinar da Filosofia. Releva, também, do interesse formativo no quadro dos outros saberes. Em Filosofia não devemos dispersar-nos pelo que outros podem fazer tão bem como nós ou até melhor. Devemos concentrar-nos no que nos cabe a nós e que outros não estão certamente em condições de fazer. O campo da reflexão filosófica estende-se por um grande número de problemas distribuídos por algumas áreas tradicionalmente delimitadas: Epistemologia, Filosofia da Ciência, Antropologia, Ética, Estética, Filosofia Social e Política... É no quadro destas áreas que os programas de Filosofia no secundário têm procurado demarcar os temas, os problemas, as teorias e os argumentos julgados de maior interesse formativo. Seria um prejuízo fazer a economia de alguma dessas áreas, encurtando ou cortando mesmo os horizontes. Há, porém, uma outra área que tem sido um parente pobre do ensino filosófico no ensino secundário (e no ensino superior também) que não pode ser descurada, dada a sua omnipresença no trabalho filosófico de qualquer tema ou problema. Referimo-nos ao que, a partir de Aristóteles, veio a ser designado como órganon, que inclui mas não se reduz à lógica e muito menos à lógica formal; que inclui mas não se reduz a uma teoria da argumentação, que, por razões que não poderemos agora explicitar suficientemente, preferiríamos designar por retórica – uma retórica integral –, entendida como ciência, arte ou técnica do discurso. Para sermos mais precisos, afirmamos que o que para nós está aqui em causa é a mestria das operações discursivas ou lógicodiscursivas ou, se preferirmos, a mestria da dimensão discursiva indispensável ao trabalho filosófico, no limite indispensável a todo o trabalho intelectual. Ao contrário do que pretendem alguns e ao contrário até do que têm sido algumas orientações mais recentes, não atribuímos à lógica formal e dedutiva o estatuto de o órganon do trabalho filosófico, ainda que a entendamos como uma das suas partes. Estaríamos dispostos a incluir nesse órganon o que alguns designam por teoria da argumentação ou nova retórica ; outros por lógica informal , outros por nova dialéctica , orientações que, com outros ainda, poderíamos também designar por lógica discursiva . Todos nós testemunhamos na escola secundária, e mesmo na universidade, as muitas dificuldades que um grande número de alunos tem em exprimir as suas ideias por escrito (e oralmente) de maneira clara, precisa e coerente. Não é só porque têm dificuldades com a ortografia ou com a gramática ou porque têm estilo pobre. O problema principal é mais profundo; mergulha a sua raiz num pensamento mal organizado e nebuloso que não percorreu ainda a via crucis do processamento discursivo nas suas diversas dimensões: processamento conceptual, processamento sintáctico, processamento semântico, processamento lógico e processamento argumentativo. 
Obviamente, que não imputamos à disciplina de Filosofia a responsabilidade exclusiva por todas estas dimensões, mas não deixamos de assinalar, sob a forma de perguntas, algumas dimensões que caracterizam a especificidade do trabalho a realizar em Filosofia e que devem fazer parte do “caderno de encargos” da disciplina no ensino secundário, enquanto parte integrante da formação geral. – A quem compete mais do que à filosofia ensinar a definir, a distinguir, a relacionar e a classificar os conceitos? É que há regras e critérios a respeitar em que mais ninguém inicia os nossos alunos. Nesta área, o parente mais pobre é certamente o desconhecimento das categorias de relação. – A quem compete senão à filosofia ensinar a distinguir os diversos tipos de proposições (enunciados de facto ou de observador, juízos de valor, enunciados prescritivos) e avaliar os critérios respectivos da sua comprovação e aceitabilidade? – A quem compete senão à filosofia ensinar a analisar e a avaliar argumentos, ou seja, a distinguir as proposições-premissas da proposição-conclusão, a detectar a forma lógica do argumento e a apreciar a sua validade, a avaliar a pertinência, a relevância e a suficiência das premissas que dão apoio efectivo, ou não, à conclusão? – A quem se há-de encarregar senão à filosofia da análise da consistência ou da coerência de um discurso? – A quem compete senão à filosofia fazer do discurso a expressão adequada do pensamento? A substituição da expressão deficiente pela expressão adequada é tarefa do professor de línguas, mas não o é menos do professor de Filosofia no que esse trabalho tem de lógico e até, porque não, de retórico. – A quem vamos pedir no ensino secundário que ensine os alunos a identificar uma definição ou um argumento circulares, a corrigir um enunciado ambíguo, a criticar uma afirmação gratuita ou a desocultar uma contradição escondida? – A quem vamos pedir ajuda para que os alunos aprendam a distinguir um indício fraco de uma prova rigorosa ou uma simples opinião de um conhecimento fortemente estabelecido? – A quem vamos pedir senão à filosofia que inicie os alunos na composição de um comentário ou na composição de uma dissertação (ou de um ensaio, se preferirmos)? Há um lamento que se ouve com frequência entre os professores de Filosofia: – Os alunos não sabem filosofia porque não sabem português. E se invertêssemos os termos da afirmação? Talvez os alunos não saibam mais português porque não sabem mais filosofia, isto é, porque não adquirem em Filosofia algumas competências discursivas indispensáveis ao trabalho intelectual; porque, do nosso ponto de vista, não lhes valemos com o que na tradição fora proporcionado pelo ensino dialéctico ou retórico. Estamos a falar da retórica integral e não, obviamente, da retórica restringida das figuras. Estamos a falar da retórica enquanto arte de se defender e não da retórica enquanto arte de enganar ou manipular. Estamos a falar da retórica enquanto arte ou técnica que ensina a proceder ao “inventário” (inventio) prévio dos argumentos pertinentes e relevantes e também em número suficiente, para blindar a possibilidade da réplica, antecipando até o maior número possível das objecções. Estamos a falar da retórica enquanto arte ou técnica que ensinava a dispor os argumentos (dispositio) da forma mais adequada e mais convincente. Estamos a falar da retórica também enquanto arte ou técnica de redacção do discurso (elocutio), emprestando a este a melhor expressão possível, para que o bene dicendi, o dizer bem, fosse simultaneamente um dizer a verdade (dimensão cognitiva), um dizer o que tem de ser dito (dimensão pragmática) e ainda um dizer belamente (dimensão estética).
Joaquim Neves Vicente in 
Comunicação proferida no Colóquio “O lugar da lógica e da argumentação no ensino da filosofia"