A retórica

A palavra “retórica” deriva da palavra grega rhêtorikê, que significa “arte da palavra”. Mas o que é a retórica e como podemos defini-la?
Ao dissertar sobre a natureza da retórica, Quintiliano reflecte sobre as várias definições desta, e deixa-nos perceber as seguintes quatro como as mais representativas das convenções retóricas clássicas:
A definição atribuída a Córax e Tísias, Górgias e Platão: geradora de persuasão;
A definição de Aristóteles: a retórica parece ser capaz de descobrir os meios de persuasão relativos a um dado assunto;
Uma das definições atribuídas a Hermágoras: a faculdade de falar bem no que concerne aos assuntos públicos;
A definição de Quintiliano, na linha dos retóricos estóicos: a ciência de falar bem.
Manuel Alexandre Júnior, in Aristóteles, Retórica, p. 15 (adaptado).
Como se pode ver, esta não é uma questão de fácil resposta e, mesmo na antiguidade, aqueles que estudaram o assunto discordavam acerca do que é a retórica. Contudo, ao lê-lo com atenção é possível verificar que as duas primeiras definições dão ênfase à persuasão, enquanto as duas últimas dão mais relevo ao falar bem. Claro que quem fala bem, em geral, persuade e quem persuade, em geral, fala bem. Porém, isso não significa que se trate apenas de uma distinção subtil e sem importância, porque aqueles que davam mais relevo à persuasão tendiam a dar mais importância às relações da retórica com a argumentação, enquanto aqueles que davam ênfase ao falar bem tendiam a dar mais importância às figuras do discurso, à eloquência e a outros aspectos da comunicação, como o tom de voz e a posição das mãos. No entanto, a definição mais comum e mais aceite é a da retórica como arte da persuasão, entendendo-se o termo “arte”, não no sentido moderno, que o aproxima das belas-artes, mas no sentido antigo de uma técnica ou de um sistema de regras práticas que possibilitam ao orador obter o assentimento do auditório por intermédio do discurso. A persuasão é usada em domínios da vida pública em que é possível deliberar, quando se trata dos interesses da sociedade e dos cidadãos, e em assembleias públicas e tribunais, embora, também possa ser usada em diálogos e em conversas privadas. Em resumo, a retórica é uma técnica ou um sistema de regras de comunicação que visam a persuasão e tem por base um conhecimento prático ou, na opinião de alguns, empírico. Tanto esta técnica ou sistema de comunicação como o conhecimento que está na sua base podem ser ensinados.
Esta caracterização da retórica é a mais comum e, de certa forma, clássica. Contudo, o interesse que a retórica despertou nos últimos anos voltou a chamar a atenção para o problema da sua definição. Como seria de esperar, surgiram outras definições, que, em geral, procuram realçar um ou outro aspecto da retórica que já se encontra na definição clássica. É o caso de Chaïm Perelman, que pretende desenvolver a definição de Aristóteles e pensa que a retórica é o estudo das técnicas discursivas que visam provocar ou aumentar a adesão dos espíritos às teses que lhes são apresentadas, e do Grupo µ, que faz da retórica o estudo do estilo e das figuras e a vê como aquilo que faz com que um texto seja literário.
Para Aristóteles, a retórica é uma arte que trata de questões que são do domínio do conhecimento comum e para as quais não existe arte específica, isto é, questões que não têm resposta científica e que podem ser objecto de deliberação por parte de um auditório. Este auditório é normalmente constituído por pessoas simples, facilmente influenciáveis, e incapazes de ver muitas coisas ao mesmo tempo ou de seguir longas cadeias de raciocínio. Por conseguinte, é a natureza das questões e do auditório, que tornam a retórica necessária. Ao contrário de filósofos seus contemporâneos tão importantes como Platão, Aristóteles considera a retórica útil porque:
A verdade e a justiça não devem ser vencidas;
  • Há alguns auditórios que nem mesmo a ciência mais exacta consegue persuadir;
  • É preciso ser capaz de argumentar sobre coisas contrárias, para dominar o tema e para, sempre que alguém argumente contra a justiça, ser possível refutar os seus argumentos;
  • Devemos ser capazes de nos defender verbalmente.
Apesar desta utilidade, a retórica também pode ser usada de forma injusta e causar grandes danos. É, por conseguinte, um instrumento que tanto pode ser usado para o bem como para o mal. No entanto, não é apenas com a retórica que isto acontece. Ela encontra-se na mesma situação que a maioria dos outros bens e em particular que os bens mais úteis, como a força, a saúde, a riqueza e o talento militar, que, se forem usados de forma justa, podem ser muito úteis, mas, se forem usados de forma injusta, poderão causar muitos prejuízos.
Aristóteles trata a retórica e o discurso persuasivo como um domínio da realidade sobre o qual é necessário fazer uma investigação que permita a constituição de um saber. Consequentemente, define a retórica, não como a arte da persuasão, mas como a arte que permite determinar quais são os meios de persuasão mais adequados a cada caso.

Entendamos por retórica a capacidade de descobrir o que é adequado a cada caso com o fim de persuadir. Esta não é seguramente a função de outra arte; pois cada uma das outras é apenas instrutiva e persuasiva nas áreas da sua competência; como, por exemplo, a medicina sobre a saúde e a doença, a geometria sobre as variações que afectam as grandezas, e a aritmética sobre os números; o mesmo se passando com todas as outras artes e ciências. Mas a retórica parece ter, por assim dizer, a faculdade de descobrir os meios de persuasão sobre qualquer questão dada. E por isso afirmamos que, como arte, as regras se não aplicam a qualquer género específico de coisas.
Aristóteles, Retórica, I, 2.

A retórica é, portanto, a arte que estuda os meios de persuasão. Contudo, isso não significa que o seu objectivo seja apenas teórico. Aquele que os conhece é também aquele que está em melhores condições para aplicá-los e, por consequência, para ser persuasivo. Por isso, a retórica não é apenas uma arte que visa compreender o discurso persuasivo. É também uma técnica que permite ser persuasivo.
Existem, segundo Aristóteles, três géneros de discurso retórico: o deliberativo, o judicial e o epidíctico. Cada um destes géneros tem características específicas que ajudam a caracterizá-los e, ao mesmo tempo, a distingui-los uns dos outros. (...)

O discurso deliberativo tem por auditório os membros da assembleia, a quem procura aconselhar ou dissuadir, mostrando por meio do exemplo que uma qualquer acção possível futura (uma vez que só podemos deliberar sobre o que ainda não aconteceu) é conveniente ou prejudicial. Esta é a forma por excelência do discurso político.
O discurso judicial é o usado pelos oradores nos tribunais. Tem por auditório os juízes e como intenção acusar ou defender, mostrando por meio do entimema que uma determinada acção ocorrida no passado (uma vez que só podemos julgar o que já aconteceu) é justa ou injusta.
O discurso epidíctico tem por auditório os espectadores no conselho e a sua intenção é elogiar ou censurar, mostrando por meio da amplificação que alguém, devido às acções que praticou, é virtuoso ou vicioso, belo ou feio.

De notar, no entanto, que algumas das características que aparecem no quadro relacionadas com um género de discurso (como o entimema ou o passado com o género judicial) não são exclusivas desse género. O entimema, por exemplo, também pode ser usado no discurso deliberativo, embora não constitua aí o meio principal de prova; e o discurso epidíctico, embora incida sobretudo sobre acções do presente, também pode incidir sobre acções já ocorridas.

Para persuadir, o orador pode recorrer a dois tipos de provas: as provas não-técnicas e as provas técnicas. As provas não-técnicas, que são específicas da retórica judicial, são aquelas que já existem e que o orador só tem de usar no seu discurso. São provas não-técnicas as leis, os testemunhos, os contratos, as confissões sob tortura e os juramentos.
As provas técnicas são aquelas que podem ser preparadas pelo orador. Estas são de três espécies:
As que residem no carácter moral do orador (ethos);
As que se encontram no modo como se dispõe o auditório ( pathos);
As que residem no próprio discurso, pelo que este demonstra ou parece demonstrar (logos).
No primeiro caso, a persuasão é obtida quando o discurso é proferido de maneira a deixar no auditório a impressão de que o carácter do orador o torna digno de fé. No segundo, a persuasão é obtida quando o auditório é levado pelo discurso a sentir emoções. E, no terceiro, quando se mostra pelo discurso a verdade ou o que parece ser verdade. Neste último caso, os meios de persuasão são:
O exemplo (que é uma espécie de indução);
O entimema (que é uma espécie de silogismo);
Embora existam outras formas de persuadir um auditório, para Aristóteles, o método apropriado é a argumentação retórica, que, como já vimos, é constituída por entimemas e exemplos.
O entimema é uma forma de argumento dedutivo que permite no domínio dos discursos públicos demonstrar ou provar uma proposição a partir de premissas que são sempre ou quase sempre prováveis. Como todos os argumentos, o entimema tem premissas e conclusão. Mas distingue-se dos outros argumentos e, em particular, dos outros argumentos dedutivos, pelo seguinte:
É usado em domínios em que as coisas podem ser de forma diferente;
É formado a partir de poucas premissas (para poder ser acompanhado por um auditório que não está habituado a seguir longas cadeias de inferências);
Tem premissas que, embora sejam aceites pelo auditório, são apenas prováveis.
Normalmente, um entimema é constituído pela proposição que se quer provar e por uma outra que fornece a razão ou justificação da primeira, como neste exemplo: “Ela deu à luz, uma vez que tem leite”..
Os entimemas têm origem em dois tipos de dados: probabilidades e sinais. A probabilidade é o que geralmente acontece, mas não o que acontece sempre e, por isso, os entimemas que têm premissas prováveis têm também conclusões prováveis. Os sinais estabelecem uma relação entre dois factos em que, a partir da existência de um, se estabelece a existência do outro. Se esta relação é necessária, o sinal chama-se tekmérion(prova, indício) e dá origem a um argumento irrefutável; se não é necessária, a conclusão é apenas provável. São exemplos de sinais:
Sócrates ser justo é sinal de que os sábios são justos;
Ter febre é sinal de estar doente.
Em qualquer dos casos, as premissas têm de ser opiniões aceites pelo auditório do orador. No caso das probabilidades, o auditório deve aceitar que é provável que algo ocorra e, no caso dos sinais, deve acreditar que existem e aceitar que indicam a existência de outra coisa.
Há duas espécies de entimemas: os demonstrativos e os refutativos. Os primeiros são aqueles que demonstram que algo é ou não é, enquanto os segundos são aqueles que refutam que algo seja ou não seja. Tanto no entimema demonstrativo como no refutativo, a conclusão é obtida a partir de premissas com as quais quer o orador quer o seu adversário estão de acordo, mas o entimema refutativo conduz a conclusões com que o adversário está em desacordo.
Além dos entimemas, que são argumentos válidos, há também os entimemas aparentes. Estes entimemas são os que parecem e pretendem ser formas válidas de dedução, mas que na verdade não são. Fazem parte desta categoria algumas das falácias estudadas na lógica informal.
A outra forma de prova admitida por Aristóteles é o exemplo. O exemplo é semelhante à indução do particular para o particular e pode basear-se em factos passados ou em histórias inventadas pelo próprio orador. Neste último caso, os exemplos podem ser parábolas ou fábulas. Eis como Aristóteles ilustra o uso do exemplo:

Quando os dois termos são do mesmo género, mas um é mais conhecido do que o outro, então há um exemplo; como quando se afirma que Dionísio tenta a tirania porque pede uma guarda; pois também antes Pisístrato, ao intentá-la, pediu uma guarda e se converteu em tirano mal a conseguiu, e Teágenes fez o mesmo em Mégara; estes e outros que se conhecem, todos eles servem de exemplo para Dionísio, de quem ainda se não sabe se é essa a razão por que a pede.
Aristóteles, Retórica, I, 2.
Aos entimemas e aos exemplos Aristóteles junta ainda as máximas. As máximas são afirmações gerais que podem ser aceites ou rejeitadas e que se referem a acções. No entanto, diz Aristóteles, se à máxima se juntar a causa e o porquê, transforma-se num entimema. Assim, a máxima é uma espécie de entimema truncado, isto é, uma afirmação cuja justificação é omitida. Por exemplo:

“Não há homem que seja inteiramente feliz” e “Não há homem que seja livre” são máximas, mas passam a entimemas, se lhe acrescentarmos “Porque o homem é escravo da riqueza ou da fortuna”.
Aristóteles, Retórica, II, 21.
Aristóteles considera que as máximas são muito úteis porque, por um lado, os juízes, devido a terem um espírito rude e serem incultos, sentem-se satisfeitos por ouvir alguém, falando em geral, ir ao encontro das suas opiniões pessoais e porque, por outro, as máximas conferem ao discurso um carácter ético, isto é, se forem honestas farão com que o carácter do orador pareça honesto.
O segundo tipo de prova técnica é a que depende do carácter do orador. Aristóteles, como vimos, privilegia o primeiro tipo, mas o facto de o auditório se deixar muitas vezes persuadir mais pela imagem que faz do orador, por aquilo que pensa ser o seu carácter, do que pelos seus argumentos faz do ethosum elemento que o orador não pode desprezar se quiser ter a garantia de que é persuasivo. O orador persuade por intermédio do carácter moral, do ethos, quando é visto pelo auditório como alguém que inspira confiança. Para isso, é preciso que o discurso, mesmo na ausência de provas pelo logos, crie no auditório uma imagem do orador como pessoa prudente, virtuosa e benevolente. Esta imagem tem de ser, segundo Aristóteles, a consequência do discurso do orador e não de aspectos anteriores e exteriores a esse discurso. É por este motivo que o ethos é uma prova técnica.

Três são as causas que tornam persuasivos os oradores e a sua importância é tal que por elas nos persuadimos, sem necessidade de demonstrações. São elas a prudência, a virtude e a benevolência. Quando os oradores recorrem à mentira nas coisas que dizem ou sobre aquelas que dão conselhos, fazem-no por todas essas causas ou por algumas delas. Ou é por falta de prudência que emitem opiniões erradas ou então, embora dando uma opinião correcta, não dizem o que pensam por maldade; ou sendo prudentes e honestos não são benevolentes; por isso, é admissível que embora sabendo eles o que é melhor, não o aconselhem. Além destas não há outra causa. Forçoso é, pois, que aquele que aparenta ter todas estas qualidades inspire confiança nos que o ouvem.
Aristóteles, Retórica, II, 1.
O terceiro tipo de prova é o que se relaciona com o auditório. Se quer ser persuasivo, o orador deve procurar suscitar sentimentos e emoções no auditório que o predisponha de forma favorável para a tese que defende. Embora critique os que o antecederam no estudo da retórica por terem dado mais importância a esta prova e por terem descurado o logos, que, segundo ele, é a prova retórica por excelência, Aristóteles reconhece a importância de emoções como a ira, a compaixão e o medo para a persuasão do auditório.

O discurso será emocional se, relativamente a uma ofensa, o estilo for o de um indivíduo encolerizado; se relativo a assuntos ímpios e vergonhosos, for o de um homem indignado e reverente; se sobre algo que deve ser louvado, o for de forma a suscitar admiração; com humildade, se sobre coisas que suscitam compaixão. E de forma semelhante nos restantes casos. O estilo apropriado torna o assunto convincente, pois, por paralogismo, o espírito do ouvinte é levado a pensar que aquele que está a falar diz a verdade. Com efeito, neste tipo de circunstâncias, os ouvintes estão em tal estado que pensam que as coisas são assim, mesmo que não sejam como o orador diz; e o ouvinte compartilha sempre as mesmas emoções que o orador, mesmo que ele não fale. É por esta razão que muitos impressionam os ouvintes com altos brados.
Aristóteles, Retórica, III, 7.
Existe uma relação estreita entre o logos, o ethos e o pathos, uma vez que as emoções (pathos) que o discurso (logos) do orador suscita no auditório têm um papel importante na construção da imagem que este faz do carácter (ethos) do orador e, desse modo, da sua capacidade de persuasão.

in criticanarede.com