A Justiça em Rawls e o liberalismo político

A justiça realiza-se, de acordo com Rawls, respeitando o princípio da diferença e construindo políticas redistributivas com base na existência de princípios gerais e substantivos, os quais definem a razão de uma democracia. O dilema do construtivismo rawlsiano é estabelecer a concretude desses princípios sem recorrer a uma concepção metafísica e ética da justiça. A justiça visa a estrutura básica da sociedade, no sentido de preservar a liberdade individual e impedir a interferência por parte do outro. Não existe uma concepção de bem que dê sentido à justiça, mas princípios substantivos derivados de uma posição original na qual se funda a neutralidade liberal. As concepções do bem, de acordo com Rawls, são aquelas que expressam a racionalidade do indivíduo, sendo derivadas de concepções morais, filosóficas ou religiosas abrangentes, que informam um ideal de comunidade. Uma comunidade é alicerçada na existência de valores e regras abrangentes que delimitam o modo como o indivíduo se deve comportar face a um conteúdo ético.
Do ponto de vista do liberalismo político, uma concepção de justiça política abandona o ideal de comunidade, porquanto esse ideal é entendido como um princípio que organiza a sociedade a partir de uma concepção moral, filosófica ou religiosa. Dessa forma, o objectivo do liberalismo político de Rawls não é pensar os termos da racionalidade do indivíduo, uma vez que este conceito se refere às concepções do bem, que, numa sociedade democrática, são plurais e incomensuráveis. O liberalismo político busca uma concepção de razoabilidade pela qual seja possível a ordenação da sociedade a partir de uma concepção cooperativa entre indivíduos que têm visões do mundo divergentes acerca do bem. O indivíduo de Rawls não é o sujeito racional que busca a realização dos seus propósitos, mas um indivíduo razoável, capaz de nutrir a virtude da civilidade e a tolerância em relação ao outro (Filgueiras, 2008). Ao abandonar uma concepção de comunidade, o argumento rawlsiano abandona a eticidade da política em nome de um construtivismo que seja capaz de pensar um conteúdo para uma concepção de justiça política e delimitar os termos da cooperação. Por conseguinte, o liberalismo político põe em causa a existência da eticidade pelo questionamento de qualquer premissa sociológica, em que o valor da autonomia não é um valor ético, mas um valor político que se realiza na vida pública através da afirmação dos princípios de justiça. Ao abandonar um ideal de comunidade e ao especular sobre a concretização de uma justiça procedimental, o construtivismo liberal de Rawls acabou por procurar uma concepção formal e deontológica das virtudes da tolerância e da cooperação. Uma teoria política balizada por uma eticidade, de acordo com Rawls, leva a uma concepção perfeccionista, segundo a qual a sociedade deve ser governada por um ideal ético que imprime um conteúdo à razão e à consciência, daqui resultando não uma sociedade pluralista e, consequentemente, democrática, mas uma sociedade em que grupos culturalmente dominantes oprimem grupos minoritários e divergentes.
O contexto no qual Rawls produziu a sua concepção de liberalismo é o contexto das lutas pelos direitos civis nos Estados Unidos e a emergência de movimentos que procuravam a sua autonomia na esfera política. A bandeira desses movimentos era a justiça e a realização de uma sociedade igualitária e democrática, o que fez convergir a luta desses novos movimentos sociais com a perspectiva de uma teoria política contemporânea alicerçada na discussão da justiça e dos seus procedimentos. A obra de Rawls constitui a trave-mestra do debate empreendido pela teoria contemporênea acerca desta matéria, muito do qual se construiu precisamente contra as teorias de Rawls. O facto é que, ao abandonar uma perspectiva de eticidade, o liberalismo político se viu obrigado a abandonar uma perspectiva sociológica, fazendo-a submergir a uma concepção deontológica e formal como método para uma teoria política normativa. Sendo a autonomia um valor político e não ético, o liberalismo político não reconhece a comunidade como locus de uma sociedade democrática, o que acarreta uma série de críticas a respeito dos pressupostos deontológicos da sua concepção de justiça. A principal crítica é a ideia de que abandonar a perspectiva de eticidade significa defender uma concepção de justiça que se derrota a si mesma.
Fernando Filgueiras in analisesocial.ics.ul.pt