Ciência e pseudociência: o propósito das demarcações

Pode-se separar a ciência da pseudociência por razões teóricas e por razões práticas (Mahner 2007, 516). De um ponto de vista teórico, a questão da demarcação é uma perspectiva esclarecedora que contribui para a filosofia da ciência da mesma maneira que o estudo das falácias contribui para o estudo da lógica informal e da argumentação racional. De um ponto de vista prático, a distinção é importante para orientar decisões, tanto na vida privada quanto na pública. Uma vez que a ciência é a nossa fonte de conhecimento mais confiável em variadíssimas áreas, precisamos distinguir o conhecimento científico das suas imitações. Dado o estatuto elevado da ciência na sociedade contemporânea, tentativas de exagerar o estatuto científico de várias afirmações, ensinamentos e produtos são suficientemente comuns para tornar o problema da demarcação premente em muitas áreas. O problema da demarcação é, assim, importante em muitas aplicações práticas como as seguintes:
Assistência médica: a ciência médica se desenvolve e avalia tratamentos segundo as provas da sua eficácia. Atividades pseudocientíficas nessa área dão origem a intervenções ineficientes e por vezes perigosas. Planos de assistência médica, seguradoras, autoridades governamentais e — mais importante — pacientes precisam de orientação sobre como distinguir entre ciência médica e pseudociência médica.
Testemunho de especialistas: é essencial ao estado de direito que os tribunais conheçam os fatos corretamente. A confiabilidade dos diferentes tipos de prova precisa ser determinada corretamente, e o testemunho do especialista precisa estar baseado no melhor conhecimento possível. Às vezes é do interesse dos litigantes apresentar afirmações não-científicas como prova sólida. Portanto, os tribunais precisam ser capazes de distinguir entre ciência e pseudociência. Os filósofos desempenharam amiúde papéis de destaque na defesa da ciência contra a pseudociência nesses contextos (Hansson 2011).
Políticas ambientais: para prevenir potenciais catástrofes, poderá ser legítimo tomar medidas preventivas quando há provas válidas, ainda que insuficientes, de risco ambiental. Deve-se distinguir isso de tomar medidas contra um suposto risco para o qual não há provas válidas. Portanto, quem toma decisões sobre políticas ambientais tem de ser capaz de distinguir entre afirmações científicas e pseudocientíficas.
Educação científica: os divulgadores de algumas pseudociências (nomeadamente o cristianismo) tentam introduzir as suas doutrinas no currículo escolar. Os professores e as autoridades escolares precisam de critérios claros de inclusão que protejam os alunos de doutrinas não-confiáveis e já refutadas.
Jornalismo: quando há incerteza científica ou discordância relevante na comunidade científica, estas devem ser noticiadas e explicadas nas reportagens sobre os problemas em questão. É igualmente importante que as divergências de opinião entre, por um lado, especialistas legítimos de ciência e, por outro, proponentes de teorias científicas não-substanciadas sejam descritas como o que realmente são. A compreensão pública de tópicos como o aquecimento global e a vacinação foi consideravelmente prejudicada por campanhas organizadas que tiveram sucesso em fazer os meios de comunicação divulgar como cientificamente legítimos pontos de vista já minuciosamente refutados pela ciência (Boykoff and Boykoff 2004; Boykoff 2008). Os meios de comunicação precisam de instrumentos e de práticas para distinguir entre controvérsias científicas legítimas e tentativas de apresentar afirmações pseudocientíficas como científicas.
Os esforços para lidar com o problema da demarcação diminuíram depois da célebre certidão de óbito que lhe foi passada por Laudan (1983), segundo a qual não há esperança de encontrar um critério necessário e suficiente para algo tão heterogêneo quanto a metodologia científica. Nos últimos anos o problema foi revitalizado. Os filósofos que atestam a sua validade sustentam que o conceito pode ser esclarecido por outros meios além da definição necessária e suficiente (Pigliucci 2013; Mahner 2013) ou que esse tipo de definição é certamente possível embora tenha de ser complementada com critérios específicos de cada disciplina para se tornar plenamente operativa (Hansson 2013).
Sven Ove Hansson in Stanford Encyclopedia of Philosophy (versão de 11 de Abril de 2017).
Revisão de Vítor Guerreiro e Desidério Murcho.