Mundo, linguagem e objetividade

O que o estruturalismo começou por dividir foi as palavras das coisas, a linguagem do mundo. Para Saussure tratava-se primeiro que tudo de afirmar a separação ontológica entre o mundo e as suas entidades, por um lado, e as palavras que as designam, por outro, entre o “referente” e o “signo”. Tratava-se em segundo lugar, no interior do signo, de separar o significante (a imagem acústica, a sequência sonora “leão”, por exemplo), do significado (a ideia ou conceito de leão), definindo a sua relação como arbitrária ou convencional (dado que, em línguas diferentes, a ideia de leão está associada a significantes diferentes: “leão”, “lion”, “löwe”…), e compreender todo o signo a partir dessa característica. Tratava-se afinal de prolongar o projecto moderno de fragmentar o logos grego e de tornar a linguagem um domínio próprio, definindo-a como um “sistema de signos”, como uma estrutura autónoma e não referencial de significação, cujas “unidades” são “valores”, dado que o seu sentido é apenas “negativo” e “posicional”, i.e., função da sua “diferença” em relação aos outros signos no quadro global do sistema.
A objectividade perseguida pelo estruturalismo baseou-se assim na concepção ou postulado prévio de que a relação entre o mundo e a linguagem é contingente, que cada um deles se define independentemente do outro, que as suas esferas de inteligibilidade são distintas e autónomas. Dir-se-ia que podíamos estar a descrever o formalismo matemático e a sua natureza puramente “ideal” e auto-referencial, e de certo modo trata-se disso mesmo, de uma matematização da linguagem e, com Lévi-Strauss, do que na cultura é homólogo à linguagem ou é a sua expressão “hiper-estrutural” – e assim Hjelmslev procurava “um cálculo exaustivo e geral das combinações possíveis” (Hjelmslev, 1969: 9) que constituem a linguagem, e Lévi-Strauss chega à conclusão que o mito é “redutível a uma relação canónica do tipo: F x (a) : F y (b) = F x (b) : F a – 1 (y)”… Já sabemos que o formalismo está sempre muito próximo do estruturalismo, e que às vezes não se sabe como distingui-los. Mas o modo de ser da linguagem não supõe, nunca supôs, essas divisões. Como o reconhece Benveniste, uma figura maior do estruturalismo, “para o falante há, entre língua e realidade, uma completa equivalência: o signo encobre e comanda a realidade; ele é essa realidade (…). Na verdade o prisma do sujeito e do linguista são tão diferentes a esse respeito que a afirmação do linguista quanto ao arbitrário das designações não refuta o sentimento contrário do falante” (Benveniste, 1988: 57). Talvez que a teimosia do falante e o senso comum linguístico que o informam nessa teimosia sejam em si mesmos bons motivos para tomarmos algum recuo em relação à ideia de que a arbitrariedade é a marca definidora de todo o signo, de que há uma cesura ontológica entre o mundo e as palavras, que devamos ver a linguagem como expressão e instrumento de um sujeito mental impessoal – para Lévi-Strauss do homo distinguens et discernens, que, movido por uma “necessidade de ordem”, aplica ao real uma grelha que o classifica exaustivamente, organizando-o “vertical” e hierarquicamente do concreto para o abstracto, do particular para o geral, à luz de princípios estritos de inclusão e exclusão, como nos propõe a visão que desenvolve do pensamento selvagem. Saussure estava no entanto bem consciente quanto a linguagem escapa à arbitrariedade, o quanto ela é simbólica, tributária da alusão, da analogia e da metáfora, de tudo, dir-se-ia, o que acontece fora da linguagem como sistema ou como estrutura lógica. Mas o seu reconhecimento de que há na linguagem dimensões não arbitrárias, não foi senão o passo prévio da afirmação da sua irrelevância para a linguística estrutural. O “símbolo” ficava assim fora da linguística do “signo”, entregue às disciplinas que desde sempre lhe deram um lugar de destaque: a teologia, a retórica, a estética e a filologia. E o que é o símbolo? Sinteticamente, é símbolo o que no mundo e em função das suas características se apresenta como correlato objectivo de disposições e sentimentos, de ideias e pensamentos, e que, em função disso, se pode tornar o veículo ou expressão “sensível” destas. Qualquer sequência de sons pode ser associada à ideia de leão, mas o leão ele próprio só pode ser associado a algumas ideias – ele pode simbolizar a coragem e a força física, mas não a cobardia ou a fraqueza, porque o leão é aquilo que significa. Ou seja, o símbolo é o plano da linguagem em que, usando o jargão estruturalista, significante e significado estão ligados por uma relação de motivação, por um laço natural e não convencional, em que a palavra se apresenta mais como uma imagem do mundo do que como um signo caracterizado pela pura convencionalidade. Mas, tão rapidamente quanto Saussure afastou da sua concepção de linguagem as dimensões simbólicas desta, Lévi-Strauss afastou do lugar que iniludivelmente o sensível ocupa no pensamento selvagem e no mito tudo o que não se reporte à sua dimensão lógica ou estrutural – afinal esse sensível é tornado parte destes porque se apresenta como uma “lógica do sensível”, porque se encontra objectivamente dado como “sistema de diferenças”, e portanto como “código”, na própria natureza. Sendo possível distinguir signo e símbolo, significante e significado, a linguagem e o mundo, não temos por isso que acreditar que as fronteiras que assim traçamos sejam mais do que, como diria Eco, “ficções operacionais”. Distinções que não correspondem afinal a diferenças, aquilo para que servem parece ser primordialmente para ilustrar quanto a complexidade da linguagem humana é resistente a deixar-se aprisionar por elas. Nem puramente sígnica (porque não há maneira de dissociar as palavras das coisas sem esvaziar artificialmente a linguagem da sua função cognitiva), nem puramente simbólica (dado que o símbolo significa sempre mais do que o que é fisicamente, e esse mais depende do seu enraizamento cultural), mas talvez mais simbólica do que sígnica, a linguagem é, como o revela globalmente a história da filosofia do século XX e os próprios desenvolvimentos teóricos da ciência linguística (ver Lucchesi, 1998), outra coisa e muito mais do que aquilo que a linguística estrutural e o estruturalismo quiseram que ela fosse. 
Filipe Verde in repositorio.iscte-iul.pt