Reparai num homem civilizado, rico, inteligente e feliz; olhai-o bem; tirai-lhe o chapéu alto, o casaco, as botas de verniz; despi-o, enfim: vereis a miséria da carne tentando um feroz regresso às formas caricatas do orogotango inicial.
Ide mais longe; penetrai-lhe o esqueleto, atravessai-lhe as entranhas: vereis então a maior das pobrezas, a miséria absoluta, a ausência de alma.
Sim: conforme a alma vai desaparecendo, o corpo vai-se sumindo e, apagando nas indecisas, grosseiras formas originárias. Por cada sentimento que morre, o cóccix aumenta um elo.
As criaturas de que se compõe a parte dominante da sociedade, estão já mais próximas do macaco do que do homem. As abas da casaca são feitas para encobrir os primeiros movimentos comprometedores da cauda... a bota de verniz tenta apertar e reduzir o pé que principia a prolongar-se assustadoramente. A luva realiza, nas mãos, o mesmo papel hipócrita...

Olhai-o bem; a primeira coisa que nos fere é a hostilidade que se exala de toda a sua fisionomia. Tudo nele é forçado, contrafeito, artificial; o colarinho alto esgana-o sem piedade; o vidro do monóculo contrai-lhe o rosto aflitivamente; o bigode parece conservar-se bem torcido e no seu lugar à custa de mil sacrifícios; os pés gritam asfixiados dentro das botas elegantes; os seus cabelos tombam para nunca mais se erguerem, sob o peso caricato do chapéu alto, torre de ridículo, tudo negro de chaminé, por onde sai o fumo das ideias em combustão!...
Teixeira de Pascoaes, in "A Saudade e o Saudosismo" in citador.pt