O fastio democrático - por Daniel Adrião

Não há dúvida que o mundo está a tornar-se um lugar cada vez mais perigoso. As placas tectónicas da política mundial estão a mover-se e estamos a assistir a terramotos em distintas latitudes. Desde a eleição de Trump à vitória do “Brexit”, passando pela vitória do “não” no referendo em Itália, que provocou a queda do governo de Renzi, às primárias das presidenciais francesas, onde ganharam os candidatos mais improváveis, quer à esquerda, quer à direita. Isto só para falar de alguns fenómenos mais recentes.
E o mais paradoxal é que muitos destes desfechos eleitorais contrariaram o que era anunciado pelas sondagens. O que constatamos é que as sondagens falham cada vez mais. E falham porquê? Falham porque só detectam a “ponta do icebergue” e ignoram aquilo que está debaixo da linha de água, onde se esconde um descontentamento que representa hoje a maioria dos cidadãos. Uma maioria silenciosa que não se revê no sistema e se coloca à sua margem.
Antes, os sistemas democráticos representavam a larga maioria dos cidadãos e deixavam de fora apenas franjas minoritárias. Hoje, os sistemas políticos já não são capazes de concitar o consensus social, uma vez que a maioria dos eleitores se recusa a caucionar com o seu voto os órgãos de representação política. Agora, a maioria dos cidadãos sofre de uma espécie de “fastio democrático”, um cansaço relativamente a um sistema que se revelou incapaz de responder aos problemas e às aspirações do homem e da mulher comuns. Cada vez menos cidadãos confiam num sistema que afunilou a democracia e a reduziu a um formalismo burocrático e rotineiro, desprovido da capacidade de captar e de dar resposta aos inputs da sociedade e a que apenas têm acesso aqueles que representam interesses organizados e corporativos. A cristalização do sistema político conduziu à sua falta de porosidade social, bloqueando os vasos comunicantes entre eleitos e eleitores, essenciais à oxigenação do sistema.
Hoje, os eleitores que não votam ou que votam branco e nulo — que é uma forma mais pró-activa de recusa do sistema — constituem já em muitos países a maioria do eleitorado. Este é um fenómeno mundial mas, não tenhamos ilusões, é também português. Não há eleição em Portugal em que a abstenção não bata um novo recorde. E não é só a abstenção que cresce, os votos brancos e nulos também têm vindo a registar um aumento significativo. Na actual legislatura, tal como já havia sucedido na anterior, os deputados que se sentam na Assembleia da República representam menos de metade dos eleitores. Isto é a todos os títulos alarmante, mas não parece afectar em nada a autoconfiança dos nossos agentes políticos, que continuam imperturbáveis na persecução das suas más práticas.
Segundo o Democracy Index 2016, da responsabilidade da Economist Intelligence Unit, Portugal ocupa o 28.º lugar e está classificado no grupo das “democracias Imperfeitas”, onde as eleições são justas e livres e as liberdades civis básicas são respeitadas (embora possam ocorrer problemas, por exemplo, ao nível da liberdade de imprensa), mas que revelam falhas significativas em outros aspectos democráticos, incluindo uma cultura política subdesenvolvida, baixos níveis de participação política e problemas no funcionamento da governação.
Quanto mais centralizada é a tomada de decisões políticas, mais assimétrico se torna o acesso dos cidadãos aos decisores e mais se cava o fosso entre os políticos e aqueles que soi-disant representam. Assistimos, tradicionalmente, em Portugal a uma acumulação de poder nas elites políticas que é absolutamente grotesca. A lógica centralista de tomada de decisões em Portugal filia-se na tradição napoleónica do nosso Estado, uma tendência pesada, em grande medida responsável pelo atraso estrutural que nos coloca endemicamente na cauda da Europa. O nosso desempenho enquanto país é medíocre, porque os nossos alicerces democráticos são muito débeis e impedem uma efectiva seleção e escrutínio democráticos, que permitiriam elevar a fasquia da qualidade da nossa democracia e, consequentemente, a qualidade dos políticos e das políticas.
Por enquanto, a maioria dos portugueses tem optado por demonstrar o seu descontentamento face ao sistema político através da recusa de participação. Mas nada nos garante que este descontentamento, já maioritário, não venha a encontrar formas de se manifestar através de fenómenos politicamente organizados. A verdade é que esta rejeição do sistema político é a antecâmara perfeita para a emergência dos extremismos.
Segundo um estudo europeu recente, regista-se uma enorme diferença entre quem declara ter simpatia por um partido político, 49,8% dos portugueses — praticamente metade da população —, e quem faz parte de um partido político, apenas 2,3% de portugueses, sensivelmente metade da média europeia. O que demonstra que, apesar de um número ainda significativo de portugueses manifestar preferências políticas, os partidos deixaram de ser atrativos para quem deseja participar de forma politicamente mais ativa.
Têm surgido nos últimos anos em Portugal várias iniciativas e movimentos com o propósito de responder a este grave problema, lutando por mudanças no sistema político. Acontece que, atendendo à natureza político-constitucional do nosso sistema de representação, em que os partidos detêm o quase monopólio, aliada à inexistência de uma sociedade civil forte e mobilizada, a probabilidade de as mudanças ocorrerem impulsionadas por dinâmicas geradas de fora para dentro do sistema é francamente diminuta.
Assim, provavelmente, a forma mais eficaz de fazer essa pressão é dentro do próprio sistema político, designadamente através dos partidos que o integram. Essa tem sido a principal causa do movimento Resgatar a Democracia, criado no âmbito do Partido Socialista e que se tem batido por uma profunda reforma do sistema político, quer a montante, no âmbito partidário, quer a jusante, no sistema de representação política. Por um lado, através da realização de primárias, abertas a simpatizantes, tanto para a eleição do líder do partido como para a eleição dos candidatos a titulares de cargos políticos, designadamente, deputados e presidentes de câmara. Por outro lado, propondo uma reforma do sistema de representação política, que garanta que são os cidadãos (e não os directórios partidários) a escolher os deputados que os vão representar na Assembleia da República.