Como se faz um poema - Manuel Alegre

Com muita coisa eu fiz o meu poema.
Rasguei retratos abri um poço
na planície. Habitei muitos cadernos.
Fui à guerra e morri. Fui à guerra e voltei.
Com muita coisa fiz o meu poema.

Parti vestido de soldado. Eu vi Lisboa
cheia de lágrimas. E um avião ficou
por muito tempo voando entre lágrimas e nuvens
minha amada chorando no aeroporto triste.
Com muita coisa fiz o meu poema.

Meu amigo morreu. Já disse como foi.
A mina rebentou meu amigo ficou
com as tripas de fora em cima de uma árvore.
Aprendi na terceira pessoa o verbo morrer.
Com muita coisa fiz o meu poema.

Eu vi soldados com as mãos cheias de sangue.
Mas isso foi de mais. E tive de aprender
na primeira pessoa o verbo matar. Desde aí
há certos adjectivos que me doem muito.
Com muita coisa fiz o meu poema.

Não vou dizer o tempo que demora um verso.
Como dizer-vos por exemplo o tempo
com as chaves metálicas batendo
Na minha cela que depois rimei com estrela?
Com muita coisa fiz o meu poema.

Cidade já rimei com liberdade
(muita coisa aprendi desde esse tempo)
Liberdade rimei depois com estrela e cela
Tristeza fiz rimar com alegria
Meu poema rimou com minha vida.

Com muita coisa eu fiz o meu poema.
Aprendi-o no vento. Aprendi-o no barro.
Sobretudo na rua. E nalguns livros também.
Porém foi junto aos homens que aprendi
como as palavras são terríveis e sagradas.

Aqui vos deixo o meu poema. Aqui vos deixo
cidade a não rimar com liberdade
liberdade a rimar com estrela e cela
meu poema a rimar com minha vida. Aqui vos deixo
as coisas com que fiz o meu poema.
Manuel Alegre